18 C
Cuiabá
segunda-feira, maio 20, 2024

Uso medicinal da cannabis pelas palavras de uma paciente

Bióloga Tânia Luz, que faz tratamento com o medicamento, é
uma das diretoras da ASPAMPAS e fala sobre o trabalho da
entidade e sua luta pelo acesso ao canabidiol

 

João Negrão

Uso medicinal da cannabis é o tema da entrevista com a bióloga Tânia Luz. Ela é especialista em biotecnologia, mestre em educação, servidora pública do Instituto Federal de Mato Grosso, onde atua junto com a equipe pedagógica como Técnica em Assuntos Educacionais e ainda dedica tempo para atuar como tesoureira da Associação de Pacientes, Apoio Medicinal e Pesquisa de Cannabis Medicinal em Mato Grosso (ASPAMPAS), que defende o uso de medicamentos produzidos a partir da cannabis para o tratamento de diversas doenças como epilepsia, Alzheimer, isquemias, distúrbios de ansiedade, transtorno do espectro autista, depressão, câncer e muitas outras.

Tânia também é paciente. Ela faz o uso de medicamento a base de canabidiol para o tratamento de transtorno de ansiedade.

A bióloga conversou com o jornalista João Negrão e a seguir reproduzimos a entrevista que foi ao ar, ao vivo, na TV RDM, canal on-line do grupo Rede de Mídias, que pode ser acompanhado através do canal no Youtube e da Fanpage no Facebook. Esse conteúdo faz parte de uma série de entrevistas e reportagens sobre o uso do canabidiol, que está sendo produzido pelo grupo RDM.

Jornal do Ônibus – A cannabis é muito marginalizada e considerada uma droga ilegal, mas se trata de uma planta que tem várias propriedades medicinais e também outros empregos industriais que aqui no Brasil a gente pouco conhece, mas em outros países é muito importante. Quero que você fale sobre a ASPAMPAS, que é a associação da qual você é tesoureira e membra muito assídua nas suas atividades.

Tânia Luz – A ASPAMPAS é uma sigla que significa Associação de Pacientes, Apoio Medicinal e Pesquisa de Cannabis Medicinal. Ela é muito jovem. A gente ainda está num processo bem embrionário. Nós criamos a associação em fevereiro, mas claro que o pessoal já vinha antes discutindo sobre a questão de associação. Nós temos o Wellington, que é o presidente, a Aline, que é uma enfermeira em Rondonópolis e também a Solianara, a Sol, que é uma mãe que luta há muitos anos para conseguir o tratamento do filho desde 2013.

Foram juntando pessoas que tinham o mesmo objetivo para conseguir viabilizar dentro de Mato Grosso esses medicamentos. Hoje, no Brasil, nós temos muitas associações canábicas, mais de oitenta lutando para produzir o próprio óleo de cannabis dentro
da sua associação com plantio legalizado e com apoio científico, além de muita vontade. Eu acho que o principal de ter surgido a ASPAMPAS é que nós temos muita vontade e necessidade de ter essa associação funcionando. Nós ainda estamos regulamentando as documentações, mas já temos muitas atividades desde que iniciamos. Temos um grupo do WhatsApp com cerca de 150 pessoas que estão ali discutindo com a gente e também fazemos parte de um grupo de pesquisa que estuda a cannabis na Baixada Santista, pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e ali, toda semana, temos encontros para tentar planejar projetos de pesquisa que viabilize e certifique o valor e a eficácia desse medicamento.

A ASPAMPAS está a todo vapor, mas nós somos muito jovens ainda e temos um caminho bem longo para percorrer.

Jornal do Ônibus – Você mencionou mais de oitenta entidades. São em Mato Grosso ou no Brasil?

Tânia Luz – No Brasil. Em Mato Grosso nós somos a primeira e única associação. Inclusive muita gente nos procura para pedir orientação, para pedir médico. Então estamos nesse processo de organização de médicos que são prescritores. Nós temos vários médicos que são prescritores e para o médico ser prescritor ele faz uma capacitação, porque nas faculdades de medicina ainda não foi ensinado sobre esse sistema endocanabinoide. Essa
semana eu li que a primeira que vai incluir no seu currículo é a Universidade Federal de São João Del Rei, em Minas Gerais, que está agregando um estudo sobre esse sistema que temos no corpo humano, como Sidarta Ribeiro, neurocientista respeitado no Brasil e no exterior, fala: é a chave e a fechadura. É como se tivéssemos essa conexão. Então, quando utilizamos remédios à base de cannabis, nós estamos organizando o nosso cérebro.

Trata-se de um encontro necessário para quem está com algum problema de saúde, como epilepsia, convulsões e doenças raras também.

Jornal do Ônibus – Não temos ainda no país, muito menos no estado e no município, uma lei que possibilita que as pessoas possam cultivar a cannabis para uso medicinal. O que tem são pessoas que conquistaram isso na justiça. Então queria que você falasse um pouco sobre este caminho, que é um caminho difícil, embora a justiça brasileira tenha compreendido muito a importância.

Tânia Luz – As pessoas que conseguiram, inclusive na nossa associação temos duas pessoas que conseguiram habeas corpus, porque é por meio de habeas corpus, a pessoa aciona um advogado, mostra a prescrição, um laudo médico e assim a pessoa consegue cultivar em casa. Não é uma coisa simples, mas dependendo do diagnóstico e da prescrição, tudo é possível.

A Sol foi a primeira que conseguiu em Mato grosso, ela foi para fora, porque tem que fazer curso, tem que aprender a fazer o cultivo, depois tem que aprender a fazer o óleo, quando você pode colher, quais são as partes que pode colher e fazer o óleo de acordo com a necessidade da patologia. Existem vários tipos, várias concentrações e o médico que vai dizer qual vai usar. Eu falo médico, mas hoje já tem outros profissionais da área da
saúde que pode prescrever o medicamento como dentistas e médicos veterinários, não tenho certeza.

Existem muitas informações em relação a evolução para a prescrição e tratamento de diversas doenças e controle, inclusive do câncer. O Sidarta falou um assunto extremamente relevante sobre a questão dos sintomas e efeitos colaterais de quimioterapia e radioterapia. Por conta da cannabis atingir questões sobre inflamação do corpo, há relatos e artigos de pesquisas falando sobre a diminuição do câncer, porque ele atua no processo inflamatório do nosso organismo. Isso é sensacional! Todo dia a gente descobre uma coisa nova.

Em relação as doenças degenerativas, como Alzheimer e Parkinson, tem pessoas que pararam de ter a tremedeira. O tratamento tem possibilitado uma melhor qualidade de vida. Quanto ao sono, tem muitas pessoas usando para dormir melhor e quando a gente fala isso, as pessoas pensam que é calmante como se tivesse fumando um “baseado”, mas é muito diferente. A cannabis vai atuar dentro do cérebro, fazendo essas conexões que o Sidarta mencionou usando a analogia da chave e fechadura, para tentar organizá-lo e fazer com que ele e o corpo funcione.

(Membros da ASPAMPAS em manifestações em defesa do uso medicinal da cannabis)

Jornal do Ônibus – Sobre a sua experiência própria, você ter transtorno psíquico, que é a ansiedade depressão…

Tânia Luz – Mais para o transtorno de ansiedade, que é uma coisa bem forte, a depressão é menor. Eu fiz o tratamento durante bastante tempo em vários momentos com remédios bem pesados de farmácia. Várias vezes eu tive que parar de trabalhar e paralisar um pouco a vida, porque às vezes os medicamentos são tão fortes que não deixam a gente nem andar na rua. Quando foi ano passado eu já estava meio cansada de ficar tirando licença, fazendo tratamentos e também os remédios passam um tempo que não fazem mais efeito, isso muitos médicos falam, e também as vezes eles passam a fazer o efeito contrário, ao invés de diminuir a ansiedade, aumenta mais e eu comecei a sentir isso no meu corpo. Foi quando eu comecei a procurar e conheci uma pessoa que usa a cannabis em Cuiabá e ela me ensinou o caminho. Eu achava que ia ser uma coisa muito difícil, mas não foi.

A maioria dos óleos que a gente tem aqui no Brasil, não sendo de associação, são importados, então a gente entra no site da Anvisa, preenche um formulário para pedir autorização para importação, que foi o que eu fiz e a maioria faz. Esperei o medicamento chegar, comecei o tratamento e comecei a perceber que eu não sentia mais a necessidade de tomar remédio para dormir, que o meu raciocínio estava ficando melhor, voltei a sentir vontade de trabalhar e meu cérebro começou a funcionar de uma maneira que já tinha bastante tempo que ele não funcionava. Eu fico até emocionada de falar sobre isso, porque é uma coisa que foi muito boa. Inclusive eu tenho lido muitos artigos científicos, porque é uma área que estou estudando e quero fazer um doutorado para tentar fazer um trabalho que substancie as publicações que nós temos.

Tem muitas publicações, mas a maioria para doenças raras, na parte da depressão tem muito pouco, a gente precisa avançar e sobre transtorno de ansiedade tem um pouquinho mais, mas ainda é pouco. A gente precisa avançar mais nisso e a gente só avança a partir do momento que tem autorização para plantio, principalmente em associações, em universidades, nos centros de pesquisa. Por isso que a gente aciona tanto o as questões de legislativo, porque a maioria das pessoas estão conseguindo de forma jurídica, mas o que nós queremos é que isso se torne uma
política pública.

Jornal do Ônibus – Eu queria que você comentasse sobre o seu caso. Como é um transtorno psíquico e transtornos psíquicos são muito estigmatizados, as pessoas acabam considerando como o famoso ‘mimimi’ e na verdade é uma coisa grave. Comenta sobre isso, porque é de grande importância para a gente quebrar esse estigma.

Tânia Luz – Sim, existe muito preconceito principalmente no trabalho. A gente passa muito isso, “está com frescura” ou então “está com preguiça”, existem vários nomes usados para caracterizar algo que realmente está escondido no cérebro e a gente tem certas atitudes que as pessoas que desconhecem pensa “fulano é desligado, fulano é agressivo, fulano não é saudável e tem hábitos ruins”. Existem várias formas das pessoas
enxergarem e eu acho que essa questão de saúde mental nós precisamos trabalhar muito, principalmente depois de uma pandemia, como nós passamos e que mexeu demais. Já vinha antes, não foi na pandemia, mas a pandemia potencializou os problemas psicológicos. Tudo aconteceu muito rápido, parecia que estávamos vivendo em um filme de ficção científica. Nem sempre conseguimos lidar muito bem com algumas questões e aí afeta no trabalho, afeta na produtividade, você não consegue produzir tão bem e acaba passando por incompetente, como se não tivesse nem aí para o trabalho. Isso incomoda bastante.

Hoje, estar produzindo é muito bom para mim, acho que para todo mundo. Aumenta a autoestima quando conseguimos fazer as coisas bem-feitas, quando conseguimos nos comunicar bem, quando conseguimos nos relacionar bem, principalmente no local de trabalho, que é um lugar que você tem que estar todos os dias, várias horas, com várias pessoas, cada uma com seu jeito de lidar com a vida.

Jornal do Ônibus – Sobre a questão da sua luta no plano institucional, sobretudo no parlamento, no executivo e também no parlamento federal, estadual e municipal. Como teria que ser a implementação de políticas públicas?

Tânia Luz – Primeiro que essa parte jurídica é um pouco mais difícil para mim, porque eu não tenho tanto embasamento para falar, mas, por exemplo, a audiência pública na Câmara foi para criar o Dia da Cannabis em Cuiabá. São pequenas coisas que vamos colocando em evidência e vai se aliando a outros estados e municípios que conseguiram avançar mais, para que a gente também consiga. No caso do deputado estadual Wilson Santos, ele tem um projeto, acho que já virou lei, que defende a distribuição do medicamento pelo SUS, porque sabemos que não é algo barato, como o Sidarta diz: é um tratamento elitista, nem todo mundo tem acesso. Às vezes a pessoa até consegue iniciar,
mas não dá conta de continuar porque o custo é mais alto que os outros medicamentos como o Rivotril, que é bem mais barato, mas tem efeitos colaterais complicados. Sobre a cannabis, não temos nenhuma evidência de efeitos colaterais, pelo menos até o momento.

Jornal do Ônibus – Acho importante frisar isso. Nós estamos falando de drogas lícitas que são extremamente prejudiciais e da cannabis, que é uma droga considerada ilícita, mas que não tem tanto prejuízo e tem todo esse estigma de ser uma droga porta de entrada para outras drogas. Eu pessoalmente acho que o álcool é a grande porta de entrada.

Tânia Luz – Ela tem um cunho racista. Um racismo estrutural dentro da nossa sociedade e que foi proibida porque negros usavam para vários fins. Outra questão que se discute bastante é sobre o sistema prisional. Porque as cadeias estão lotadas de pretos e pobres de favelas e periferias que estão relacionados à questão da maconha? A gente sabe que tem pessoas que fazem comércio com isso e não são presas porque tem dinheiro, tem poder. É importante pensar sobre isso e inclusive cogitar que no momento que o comércio estiver legalizado no Brasil, essas pessoas sejam reparadas pela sociedade, porque a vida toda elas foram taxadas por marginais e isso não é legal. Na favela tem muita gente, muitas famílias, muita gente que luta e trabalha para sobreviver dentro da sociedade que libertou os escravos, mas os deixou à própria sorte. Hoje que a gente entende melhor a história, sabemos que temos uma reparação histórica muito grande para fazer com essas pessoas para que elas sejam inseridas na sociedade como os brancos são.

(Membros da ASPAMPAS participam da Conferência Municipal de Sáude)

Jornal do Ônibus – Eu queria que você fizesse as suas considerações finais e agregasse alguma informação que você considera importante e que eu não lhe indaguei.

Tânia Luz – Nós participamos de um evento aqui em Cuiabá que foi o primeiro, no dia 6 de fevereiro, lá no Hotel Odara. Ali nós tivemos contato e foi o dia que a ASPAMPAS foi criada. Vieram vários profissionais: agrônomos, advogados, médicos. O deputado Wilson também participou e foi discutida a questão do plantio do cânhamo. Com o cânhamo você pode fazer várias coisas como roupa, carro, casa. Além do óleo e do medicamento, a indústria pode ganhar muito com isso. Então discutimos o plantio até com o pessoal do agro, mostrando as possibilidades de rendimento.

As associações que conseguiram o plantio, conseguiram por meio da justiça, né? Como eu falei, a Abrace é uma associação grande, que tem atendido muita gente. Nós ainda estamos no início e não temos essa questão do plantio, no momento estamos ajudando as pessoas a encontrarem o caminho com consulta médica, organizando uma lista de prescritores, organizando lista de medicamentos. Temos medicamentos nas farmácias, são mais caros, mas estamos fazendo um levantamento.

Jornal do Ônibus – Esses medicamentos já têm no mercado aqui em Cuiabá? Pode achar em alguma farmácia?

Tânia Luz – Sim. O médico prescreve, a pessoa vai na farmácia e compra. Nesse caso nem precisa de autorização da ANVISA, porque a partir do momento que ele entra na farmácia, ele já conseguiu a autorização da importação. Se eu não me engano, tem uma marca que é brasileira. Estamos fazendo esse levantamento para saber o que temos disponível no mercado e quem pode atender os pacientes para cada tipo e especialidade.
Na farmácia o custo é mais alto do que o que eu uso, por exemplo. O meu vem do Paraguai, de uma empresa chamada Koba, que tem o melhor custo-benefício. Mas se comprado pela associação Abrace, sai com um custo bem mais baixo. Cerca de quatro vezes menos do que se encontra na farmácia. Nós queremos fazer isso, temos a intenção de num futuro breve ter um plantio e fazer a extração do óleo. Estamos caminhando para
isso. São muitas demandas para chegar no nível dessas grandes associações que estão conseguindo atender muita gente.

Jornal do Ônibus – Tem alguma articulação feita com a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) ou com a Universidade do Mato Grosso (UNEMAT)?

Tânia Luz – Estamos mais ou menos no caminho. Foi feito um evento em Diamantino e membros da nossa associação foram junto com a UNEMAT. E nós também estamos dialogando com a UFMT, mas não fizemos parceria, estamos encontrando um caminho para que faça parceria. Por exemplo, na Universidade Federal de Santa Catarina, onde eu fiz meu mestrado, já tem autorização para plantio. Tem universidades que já têm autorização para plantio, então eles já tão plantando para desenvolver as pesquisas e geralmente essas universidades elas estão em parceria com as associações. Elas estão de mãos dadas, porque o nosso papel como associação e como universidade é salvar vidas em primeiro lugar, não estamos visando lucro. Então queremos que as pessoas tenham acesso e que consigam melhorar sua qualidade de vida a partir do tratamento com cannabis.

Não perca