Na ânsia por defender e proteger, muitas vezes reproduzimos opressões e endossamos silenciamentos
Júlia Pessôa
Vou contrariar tudo que aprendi no bom jornalismo e pedir licença pra falar de assunto velho. Mas é que tem sapos que a gente precisa cuspir antes que nos engasgue. Algum tempo atrás, todo mundo foi para as redes sociais meter a boca no trombone e manifestar seu apoio a uma mulher, negra, grávida e famosa, pela traição que ela havia sofrido e que tinha vindo a público. Até aí (quase) tudo bem.
“Quase” porque essa avalanche de gente de tudo quanto é canto “manifestando solidariedade” pode até ser vista como empatia, mas também lembra bastante o efeito “Nana Gouvêa”. Um meme icônico (e real) lá nos anos 2010, de quando a modelo fez um ensaio fotográfico em meio aos escombros deixados pelo furacão Sandy em Nova York, completamente fora do tom (e da casinha). O que quero dizer é: na ânsia de fazer parte de tudo, as pessoas acabam metendo os pés pelas mãos, e caçando like em momentos, no mínimo, inadequados.
Mulheres são alvos de comentários que – às vezes até com intenção de defender – reproduzem opressões e endossam silenciamentos (Ilustração: Freepik)
Mulheres são alvos de comentários que – às vezes até com intenção de defender – reproduzem opressões e endossam silenciamentos (Ilustração: Freepik)
Fora isso, casos como este da traição da famosa, especificamente, desencadeiam outra reação em cadeia desastrosa, de gente reforçando o machismo por outro efeito – o “efeito Seu Jorge”, em que milhares de homens e mulheres afirmam, ainda que nas entrelinhas, que “se fosse mulher feia tava tudo certo”. Neste fenômeno, enquadram-se posts dizendo que “se até Fulana foi traída, imagina eu”, e outros tantos “o cara é burro demais, fazer isso com uma mulher que nem Fulana”. Quanto a traições, quando se fura um acordo (seja ele qual for) num relacionamento, a beleza da vítima não aumenta grau de desonestidade e mau-caratismo de quem traiu. Não deveria, pelo menos.
Mas pior mesmo foi quando, pouco tempo depois, a mulher deste caso famoso decidiu reatar o relacionamento com o desquerido que a internet vinha xingando repetidamente. Uma outra enxurrada de posts começou, com gente chamando a então apoiada por todos de burra para baixo, falando do arrependimento em tê-la “apoiado depois da traição”. Para começar, essa onda de mensagens criticando uma mulher que decidiu voltar com um parceiro que a traiu culpabiliza a vítima por algo que foi causado a ela: “Por isso que é chifruda”.
Infelizmente, a gente tem a tendência de querer que a vítima de qualquer situação se comporte de maneira ideal: que consiga romper com o que lhe causa mal e esteja a salvo pra sempre. Usei esse caso da cantora, com uma traição, como exemplo, mas é o que acontece, com as mulheres, em todas as manifestações de violência e opressão a que são submetidas.
Tá no imaginário popular, na expressão “mulher de malandro”, cunhada com muito mau gosto na reincidência da violência doméstica. Uma expressão que mira no humor e acerta na escolha em ignorar que a vítima e o abusador são unidos por uma cola que, muitas vezes é feita de ameaças, dependência financeira, medo da violência contra si e os filhos, medo da morte, medo do abandono, anos de autoestima destruída.
Além disso, boa parte dos ataques reforça justamente o que é incutido na cabeça de mulheres que vivem relacionamentos abusivos: “você faz tudo errado”, “você só decepciona”, “sem mim, você está sozinha”. É exatamente o que ecoa no tipo de “apoio” manifestado num “se você voltar pra ele, não conte comigo.” E é assim que o ciclo de “ir ficando” por temer “não ter com quem contar” só se estende.
É óbvio que há nuances. Em casos de risco extremo à segurança, integridade, ou até de morte, tem vezes que a gente precisa intervir mesmo. Seja dando um choque de realidade, seja oferecendo abrigo, seja emprestando um ombro ou um ouvido. Mas essa tática de só acolher alguém que se comporta da maneira que desejamos reflete mais um desejo de nosso ego em ser o salvador da pátria do que qualquer manifestação de compaixão ou generosidade.
É como aquelas amizades que estão “sempre ali” por nós, mas só quando estamos na pior. Quando estamos celebrando conquistas (suadas ou fáceis) e recebendo os louros, simplesmente não conseguem ficar felizes, porque não têm mais como ou do que nos “salvar”. Pessoalmente, eu desconfio de qualquer pessoa que não fique feliz pelos outros. E de qualquer ajuda, num momento de vulnerabilidade, que venha com cláusulas condicionais.
Apoiar uma mulher plenamente é respeitar sua autonomia, ainda que discordemos radicalmente de suas escolhas. É compreender que decisões são multifatoriais, e que opressões de gênero são sempre complexas. É uma verdade difícil de engolir: se seu apoio não respeita a autonomia das mulheres, seu único desejo é ajudar a si mesmo.