O protagonismo do Estado na organização e gestão financeira e administrativa da previdência social, que consolidou-se em 1930, não significou a concretização de uma solida contrapartida financeira. Bem verdade que historicamente a contribuição financeira estatal para o sistema previdenciário sempre foi residual, restrita e condicionada a interesses governamentais nem sempre convergentes com as necessidades daquele sistema.
Essa omissão vai se tornar uma das principais características da atuação do Estado face à Previdência Social e terá relevante papel na deterioração da saúde financeira do sistema.
De um lado, o Estado contribui residualmente e, de outro, passa a se utilizar do fundo previdenciário como receita própria, para execução de políticas e ações que pouco ou nada têm a ver com a questão previdenciária. Esse cenário é o que perdura até os dias atuais.
Com o advento da Constituição Federal de 1988 uma nova etapa para Previdência Social começa, que passou a abranger a Seguridade Social, constituída com base no tripé Saúde, Previdência e Assistência Social.
Desta forma passa a reunir benefícios e serviços destinados ao cidadão brasileiro dentre os quais se destacam as aposentadorias e pensões, o auxílio-doença, o salário-maternidade, o salário-família, o auxílio-reclusão, o Sistema Único de Saúde (SUS), além dos benefícios assistenciais como Bolsa-Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), entre outros.
A Reforma estará dificultando o acesso aos benefícios previdenciários, aumentando de maneira significativa o tempo de contribuição e idade
Ademais a Constituição Federal de 1988 estabeleceu as fontes de custeio da seguridade social, as quais principais são: contribuições sociais do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre a folha de salários e demais rendimentos do trabalho, a receita ou faturamento e o lucro; contribuição do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, isentos os aposentados e pensionistas do Regime Geral de Previdência Social; contribuições advindas de receitas de concursos e prognósticos e contribuição do importador de bens ou serviços do exterior, entre outros.
Importante avanço com o advento da Constituição Federal foi a Constitucionalização da Previdência Social. Desta forma para que haja alteração em seu escopo, necessita a partir de agora, a mudança ocorra mediante Proposta de Emenda Constitucional, vale lembrar que só será aprovada se obtiver o quórum de 3/5 da totalidade dos membros em dois turnos de votação nas duas casas do Congresso Nacional. Primeiro, na casa iniciadora, após a discussão, será aprovada se obtiver 3/5 dos votos. Dificultando assim a mudanças posteriores devido conveniência dos governos que adviriam.
A partir de 1993, com a criação do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) as contas da Previdência passam a fazer parte da agenda de debates sobre o déficit público.
Houveram três mudanças significativas que na Carta Maior referente a Previdência Social: em 1998, com a Emenda Constitucional n º 20; em 2003 a Emenda Constitucional nº 41, e em 2005 com a Emenda Constitucional n. 47.
Por último houve a investida do Governo anterior sob a previdência com o envio ao Congresso Nacional da PEC nº 287em 2016. Como já sabemos a investida realizada pelo Governo anterior não obteve êxito.
Posto isto, foi apresentada neste ano, a Proposta de Emenda Constitucional número 6/2019 no Governo Bolsonaro.
Sob forte argumento de déficit previdenciário e necessidade de adequação ao Mercado Financeiro apresentou a PEC 06/2019.
A alegação que o déficit da previdência segue uma trajetória explosiva, o governo federal elaborou essa reforma cujo sentido foi o de reduzir drasticamente os gastos tanto previdenciários como no âmbito da assistência.
Todos os brasileiros, inclusive eu, sabemos que a Reforma da Previdência é inevitável e necessária para que o Brasil recupere-se da crise econômica instalada no Estado desde os governos anteriores.
No entanto a maneira como está sendo conduzida, seja pela falta de transparência com a população, ou pelo eminente perigo ás normas constitucionais, trago alguns pontos importantes da reforma.
Vejo como a principal mudança é a Desconstitucionalização da Previdência social.
Na redação do art. 1º da PEC n.06/19, que altera o art. 40, §1º, da CF, promove uma inadequada desconstitucionalização da previdência social brasileira, configurando retrocesso nos âmbitos da proteção social e da segurança jurídica dos cidadãos.
Para explicar basta verificar pelo histórico mencionado acima que em todas as vezes que houve a mudança nas regras previdenciárias, foram feitas mediante Proposta de Emenda Constitucional, ou seja, tem todo um tramite regrado na Carta Maior, que dá mais visibilidade e conhecimento à população sobre as mudanças que irão ocorrer.
Caso aprovado o texto em questão, haverá grave incerteza quanto ao futuro das populações protegidas, cujas regras previdenciárias sujeitar-se-ão, doravante, à vontade da lei infraconstitucional, sob quóruns parlamentares bem inferiores àquele necessário para aprovar uma emenda constitucional.
Outro regra que no meu entendimento que é inconstitucional está na redação do art. 195, §5º, que dispõe que nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado, ou estendido por ato administrativo, lei, ou decisão judicial, sem a correspondente fonte de custeio total.
Com a aprovação da reforma, os Juízes, ao proferir sentenças, deverão saber a fonte de custeio total para o deferimento do benefício previdenciário, é evidente neste ponto mais uma ameaça a Constituição. Como saberá o Judiciário sobre a destinação dos recursos de custeio da Previdência Social, além de inviável é totalmente descabido tal regramento.
Além disso a PEC cria o Regime de Capitalização, que está privatizando a previdência social, que em resumo surge como uma forma de estimulo ao individualismo, cada contribuinte tronar-se-á responsável pela sua própria aposentadoria. Esse regime como exemplo de vários países em que foi implantado, e o resultado foi desastroso, exemplo podemos elencar o Chile, tende a favorecer largamente os bancos, ávidos que administram esses fundos e, ainda, oferecem planos de previdência privada elevados e taxas de administração.
Outro ponto muito importante é que a Reforma estará dificultando o acesso aos benefícios previdenciários, aumentando de maneira significativa o tempo de contribuição e idade. A proposta acrescenta que se a pessoa quiser se aposentar com a média de tudo o que contribuiu, terá que trabalhar por pelo menos 40 anos.
Agravava-se ainda mais a situação, pois ainda prevê a possibilidade de aumento das idades mínimas a cada 4 anos, conforme a ampliação da expectativa de vida.
Além disso, a PEC 06/2019, altera os avanços que já estão em vigor referentes aos Benefícios de prestação continuada ao idoso e à pessoa portadora de deficiência, dificultando ainda mais seu recebimento. O idoso só poderá ter direito ao BPC aos 70 anos. E a regra da condição socioeconômica passara a valer como requisito objetivo.
Os segurados especiais, ou rurais serão também os mais afetados pela Reforma. Os agricultores deverão passar a contribuir para previdência social com no mínimo, R$ 600,00 reais anuais, mesmo quando não tiverem produção suficiente. Além disso, há mudança na idade mínima, e no tempo de contribuição. Se aprovada tanto os homens quanto as mulheres somente se aposentarão com 60 anos de idade e com no mínimo 20 anos de contribuição.
Haverá ainda significativa mudança nos valores de pensões e aposentadorias por invalidez, com a diminuição da base de cálculo, que terá uma redução quase na metade. Ocorre também a redução no valor da aposentadoria, que passará a calcular o valor a partir da média de todas as contribuições efetuadas, desde 1994.
Por fim, os servidores públicos e professores serão muito impactados com a reforma, com aumento de alíquotas absurdamente altos, a PEC prevê um verdadeiro confisco nos salários de muitos servidores, chegará a dobrar a contribuição previdenciária de alguns. Prevê ainda possibilidades de alíquotas adicionais progressivas e extraordinárias, conforme necessidade atuarial, algo que traz imensa insegurança jurídica. Para os professores tanto home quanto mulher deverá contar com 60 anos de idade e com no mínimo 30 anos de contribuição.
Afinal, o Governo afirmar simplesmente sobre o déficit da Previdência, a partir do comportamento das receitas e despesas atuais da seguridade social como um todo, é mitigar a realidade.
Ao desconsiderar as práticas do Estado, que durante todo o período de existência da previdência retirou recursos, esvaziou suas receitas, protegeu inadimplentes e ainda financiou projetos de construção e mesmo, mais recentemente, políticas rentistas de pagamento de juros, o debate meramente atuarial sobre déficit ou superávit da previdência perde essência e conteúdo, e a discussão sobre o tema deve se constituir em outros parâmetros.
Finalmente o apontado déficit da Previdência Social é questionável, e não se justifica a aprovação da Reforma na forma proposta, sob pena de graves prejuízos a esmagadora maioria da população, em especial os mais carentes e aqueles que mais necessitam da proteção social, entendo que é de vital importância que todos procurem se informar ainda mais e participem do debate sobre esta reforma da forma mais intensa, comprometida e democrática possível.
Devemos ficar atentos, cobrar nosso eleitos, participar das discussões e envidar esforços para evitar que, ao invés de equilibrar as contas, a proposta de reforma termine por sentenciar a Previdência a um inaceitável e inconstitucional, retrocesso social ou, mesmo, ao seu desaparecimento.
GABRIELA SEVIGNANI é advogada.