O professor de ciência política da UnB Luis Felipe Miguel, que ministrará disciplina sobre o ‘golpe de 2016’ – Ruy Baron – 6.ago.2014 / Valor
Recentemente a universidade federal UnB causou um barulho nacional ao criar uma disciplina eletiva chamada “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”, oferecida pelo curso de graduação de ciência política daquela instituição. O ministro da Educação, Mendonça Filho, não gostou da proposta. Houve reação de todos os lados. Nesta semana, a Unicamp anunciou uma disciplina na mesma linha, optativa e oferecida por cerca de 30 docentes do IFCH (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas) da universidade. Segundo informações obtidas pelo Abecedário, a UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) também vai ofertar uma disciplina sobre o golpe, optativa, ministrada por quatro docentes das ciências sociais.
Uma universidade pública brasileira pode oferecer um curso que claramente se opõe ao atual governo?
Para responder isso, vamos entender como funcionam as 195 universidades brasileiras –públicas e privadas. De acordo com a Constituição de 1988, “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial” (artigo 207). O principal marco legal da educação brasileira, a LDB, de 1996, também afirma que, no exercício de sua autonomia, as universidades são asseguradas de “criar, organizar e extinguir, em sua sede, cursos e programas de educação superior”(artigo 53).
Na prática, o que a Constituição e a LDB querem dizer é que as universidades devem seguir uma lógica própria, do ensino superior e da ciência, ao oferecer seus cursos. O governo não pode interferir, mesmo que os recursos para funcionamento da instituição venham do próprio governo. Isso leva o nome de autonomia didática.
Agora vamos ver como funciona fora do Brasil. Se você estudasse em Harvard, a melhor universidade do mundo de acordo com o ranking de universidades ARWU de 2017, você poderia fazer um curso de filosofia a partir de super heróis, poderia estudar a polarização das eleições americanas de 2016 ou ainda teria a possibilidade de fazer um curso de economia e política social sob a ótica libertária. Essas disciplinas optativas estão à disposição (em meio a outras milhares de opções) dos alunos daquela universidade que, antes de começar o ano letivo, selecionam de dois a quatro cursos por semestre.
SOB DEMANDA
Em universidades como Harvard, as disciplinas são mantidas se tiverem demanda. Um professor pode criar e ofertar um curso que considere fantástico, mas que, sem alunos, estará fadado a desaparecer. Ainda não há dados sobre a proposta da Unicamp, mas o curso da UnB está com lista de espera.
Mais: em boas universidades do mundo, os alunos tendem a fazer disciplinas fora da sua área e, inclusive, inscrevem-se em tópicos com os quais discordam. Nos primeiros dias de aula, os alunos de universidades de ponta como Harvard frequentam os cursos previamente selecionados para conhecer detalhes do programa e, também, para entender como pensam os professores. Se concordarem com o professor, alguns ficam. Se discordarem, outros também ficam justamente porque esses estudantes são treinados a ouvir os argumentos de quem pensa diferente deles. É assim que se dão os debates de qualidade.
Se a gente seguisse a mesma lógica no Brasil, a disciplina da UnB ou da Unicamp não seria questionada pela oposição, ao contrário: os alunos que discordam da ideia de um golpe, baseados em teses e autores distintos, fariam o curso para entender os argumentos dos docentes e para expor suas próprias ideias.
No dia seguinte ao da eleição dos EUA, a Universidade de Stanford, também entre as melhores do mundo, por exemplo, suspendeu as aulas e fez um dia de meditação para que os alunos refletissem sobre o que tinha acontecido. A Universidade de Michigan, que também está entre as melhores do mundo, promove com frequência debates entre especialistas contra e a favor do aborto, ou do Obamacare ou da deportação em massa de imigrantes estimulando os alunos a votarem em quem teve o melhor argumento. Proibir debates, ou cursos, está fora de cogitação.
Aqui no Brasil, Mendonça Filho (MEC) perguntou, no Twitter, se a ex-presidente Dilma Rousseff (PT), em nome da autonomia universitária, “defenderia a criação de uma disciplina intitulada ‘O PT, o petrolão e o colapso econômico do Brasil’?” E continuou: “É inaceitável o uso de recursos humanos e materiais das universidades públicas para servir para a divulgação de teses malucas do PT, seus aliados ou qualquer partido político.”
No caso do curso da Unicamp, que acaba de ser anunciado, o professor do IFCH Armando Boito Júnior afirmou, em reportagem da Folha, que “cada professor vai dar aula sobre o tema que pesquisa”. “São pesquisadores e especialistas no assunto, ninguém vai lá para dar opinião”, diz.
Se os cursos propostos seguirem a lógica de ensino e de pesquisa instituída pela própria universidade, que é autônoma, e não em “teses malucas” como afirma o ministro, se forem optativos e se houver demanda, não me parece que o governo possa legalmente interferir e, tampouco, impedir, a oferta das disciplinas.