O dever de indenizar pelo mero aborrecimento

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Entende-se que figurar um ocorrido discutido, um prejuízo sofrido, como mero aborrecimento e com isso indeferir o pleito indenizatório do requerente é um ato sem qualquer caráter inibitório, e crê-se ser contrário ao senso comum de justeza e equidade.

 

O aborrecimento nada mais é do que a transfiguração do estado anímico de outrem, decorrente de situações e circunstâncias, não causadas por si próprio, que desencadeiam sentimentos de chateação, tristeza, raiva e até dor.

 

A vida é um bem precioso, uma passagem como muitos reconhecem, sendo única e devendo ser aproveitada da melhor forma possível, fazendo e esperando o bem de si mesmo e daqueles com quem se relaciona, seja pessoal ou profissionalmente.

 

Amargar um sentimento de desprezo, de escanteio e de menosprezo com seus interesses e vontades ultrapassa, com grande certeza, as raias daquilo que se descreve como mero aborrecimento, vez que a palavra “mero (a)” vem a ser aquilo que não detém importância, comum, simples e inopinado.

 

É cediço que o futuro é um caminho incerto, tanto como a vida é de tamanha fragilidade, que não é possível obter conhecimento de quantos dias ainda estão por vir, e com isso se traduz o fato de que um dia em que se experimenta o dissabor e o aborrecimento é um dia que se pode considerar como desperdiçado, algo que deveria ser intolerável pelos aplicadores da lei, da ordem, da moral e da Justiça.

 

Assim, entrando na esfera das relações de consumo, independente da ocorrência ou não de negativação indevida, a existência de incessantes cobranças por algo que não solicitou ou contratou, ameaças realizadas por atendentes, mensagens incômodas, geram aborrecimento, transtorno e frustração, por culpa de terceiro que age com erro ou inidoneidade.

Não é comum ser aborrecido, não é necessário amargar o aborrecimento, não é justo ter de suportar tal fato sem que o ofensor seja efetivamente punido dentro da legalidade

Sabe-se que hodiernamente já se trabalha com teorias como a perda do tempo útil, desvio produtivo do consumidor e outras nomenclaturas semelhantes, porém que detém o mesmo fundamento. Mas, deve-se enxergar como algo mais abrangente, mais visceral, mais prático e aplicável à rotina da vida humana como um todo.

 

Nesse raciocínio, compreende-se não ser somente a perda de um tempo útil ou de desvio produtivo, corresponde-se, no cerne da questão, a perda de período de vida, um desperdício desnecessário de um momento que deveria ser bem vivido, bem experimentado e gerador de boas memórias.

 

O dispêndio de tempo para buscar soluções que não necessitariam ser buscadas, se inexistissem as falhas nas prestações de serviços, atinge um patamar de descontentamento naquele que deve ir atrás, por estar querendo resolver uma situação causada por terceiro, e esse terceiro somente se mantém inerte, assistindo de camarote o aborrecimento que o consumidor de boa-fé experimenta indevidamente.

 

Entendem os Tribunais Superiores que a falha na prestação de serviços por si só já configura a presença de dano moral a ser indenizado, e, assim, assomado ao desperdício de tempo e de vida, a indenização deve ser fixada, não para causar enriquecimento do consumidor, mais para que seja um ato inibitório, visando o cessar das práticas danosas reiteradas.

 

Ora, o não aplicar da punição e da disciplina apenas alimenta os maus fornecedores, dando-lhe fôlego com amparo legal para permanecer na continuidade de ofensas ao cidadão de bem, ao consumidor de boa-fé. Não se espera que o Judiciário seja omisso ou cúmplice perante as mazelas sofridas pelos hipossuficientes, se espera o agir escorreito e justo, que atinja a cessação de prejuízos, esses que geram o abarrotamento das varas e dos juizados.

 

Então, esperando a compreensão legal, se tem que quando não se efetiva a contratação, não se solicita algo, não se espera a cobrança e nem o aborrecimento.

 

Ao se dar início ao dia, o desejo comum de todo homem médio é de felicidade, prosperidade, êxitos e não de aflições decorrentes de cobranças indevidas, transbordamento da caixa de entrada com e-mails incômodos, esvaimento da memória do celular com o recebimento de mensagens de texto, ligações cansativas e repetitivas, que tentam lhe impingir algo que inexiste.

 

E com o avançar das decisões judiciais que tratam tais fatos como mero aborrecimento e que não lhe aplicam o dever de indenizar como meio pedagógico, disciplinar e punitivo, deixam de aplicar o direito e jamais alcançam a esperada justiça.

 

Adiante, é sabido que as empresas fazem o que fazem por não receberem reprimendas eficazes ou que lhe gerem o receio em agir na marginalidade das normas, conhecendo também a estatística real de que a cada 10 (dez) consumidores que amargam os aborrecimentos, apenas 01 (hum) busca guarida junto aos homens da lei, e esse não vem encontrando a justiça necessária.

 

O recado que o judiciário tem dado às empresas é, resumidamente: “Olá fornecedor, pode aborrecer o consumidor, é normal e rotineira a sua prática, já faz parte da vida comum, e se o consumidor não pagar pelo que cobra e vir a te processar, lhe daremos apoio no sentido de apenas cancelar a cobrança, não lhe causaremos aborrecimento e prejuízo, e seus grandes lucros não serão minorados com as ínfimas indenizações”.

 

Essa rotina embaraçosa que atualmente criamos nos distancia das coisas boas e transforma em comum e rotineiro o aborrecimento, o abuso, o excesso e a má prestação de serviços de um modo geral, fazendo com que o aplicador da lei se esquive de aplicá-la, posto ser um mero fato do cotidiano, esse criado e aturado por quem deveria repudiá-lo.

 

O Código de Defesa do Consumidor nos trás em seu artigo 14 que o fornecedor de produtos ou serviços possui a responsabilidade objetiva, responde independentemente da existência de culpa. Tal fato é também compreendido como Teoria do Risco Empresarial, onde o fornecedor assume o risco ante a sua atuação, mais não é isso que ocorre na real prática.

 

O Risco acima destacado está sendo assumido pelo consumidor, que diariamente vive sob o risco de ser cobrado indevidamente, ser onerado excessivamente, ser exposto ao ridículo, ser lhe impingida a pecha de mau pagador e demais situações constrangedoras que já se tornaram prática comum de certos fornecedores de produtos ou serviços.

 

Ao fim, pontua-se que àquele hipossuficiente o aborrecimento tem de ser comum, afinal todos vivem na iminência de serem aborrecidos, e para aqueles que geram o aborrecimento, nada sofrem. Caso insistam nessa linha de indeferimento de indenizações por mero aborrecimento, deveriam sugerir aos legisladores a criação de um tópico na lei consumerista, algo que deixe claro ao consumidor que o fornecedor terá o direito de exercer a tática de aborrecer o mais fraco, na tentativa de angariar maior lucro, mesmo que para isso resulte em prejuízos financeiros e emocionais, lhe gerando o desperdício, além de dinheiro e tempo, de sorriso, de paz e tranquilidade, de vida!

 

Observa-se que insistentemente se vê, em decisões, que não são existentes os critérios para a fixação de indenização e sua quantificação na lei em vigor, mais estão sendo criados inúmeros critérios para a sua não fixação, não sendo possível enxergar retidão em tais fatos.

 

E se entendem que tais critérios atendem o direito, devem passar a entender que não atendem a justiça. Afinal, já dizia o jurista Eduardo Couture que o dever é lutar pelo direito, mas no dia em que o direito encontrar-se em conflito com a justiça, o dever é lutar pela justiça.

 

O normal para a vida cotidiana, para aquele que honra com suas obrigações, deveria ser a tranquilidade de um dia de resultados positivos oriundos de sua conduta proba, um dia com ligações pessoais e profissionais comuns, e-mails corporativos ou publicitários, de jornada de trabalho cumprida, de recepção em sua unidade familiar, sem aborrecimentos.

 

Não é comum ser aborrecido, não é necessário amargar o aborrecimento, não é justo ter de suportar tal fato sem que o ofensor seja efetivamente punido dentro da legalidade.

 

Indenizar o aborrecido não é dar-lhe somente dinheiro, é lhe proporcionar o sentimento de que a justiça foi feita, é uma maneira de demonstrar que o prejuízo, mesmo que emocional, merece ser reparado e que o ofensor foi penalizado por sua conduta falha e falta de boa-fé, é, acima de tudo, demonstrar que o ofendido merece RESPEITO!

 

SYLVIO FEITOSA DE FREITAS é advogado, especialista em Direito Processual Civil e ex-membro da Comissão de Juizados Especiais da OAB/MT.

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