Liquidificador humano

0
122

Mary Shelley foi minha companhia e mais adiante explico, porque não poderia ter tido companhia mais cheia de significado. Coloquei os fones de ouvido e afundei a cara no livro. Dois bancos à frente uma moça se apressa em abrir as janelas. Não é nem 6h30 da manhã e o cheiro do ônibus amarelo, que está completamente vazio, está putrefato e insuportável. Daquele ponto até meu destino, levaria uma hora e meia para percorrer cerca de 10 quilômetros.

Quando o ônibus para perto de alguma área de preservação permanente (sim, moro em uma região abençoada por esses pequenos oásis), temos alguns instantes de alívio: o frescor da mata alivia a temperatura e o mau cheiro. Santa natureza!

À medida que o coletivo adentra áreas mais cinzentas e de ruas encarquilhadas da cidade, mais penosa se torna a viagem. São dez quilômetros dentro de um liquidificador. Foi uma amiga que usou essa comparação: “Cada liquidificador, tanto barulho e sacolejo que chego ao trabalho enjoada”. Melhor definição que ouvi sobre a viagem em transporte coletivo em Cuiabá.

Eu que já tive o privilégio de viver em cidades com transporte coletivo de qualidade, ressinto que Cuiabá ainda esteja tão aquém de oferecer um mínimo de conforto e infraestrutura para seus cidadãos. Confesso que, por vezes, sinto muita falta da tranquilidade de entrar no transporte coletivo e viajar dormindo, ouvindo alguma música ou lendo sem ter que me preocupar com vaga de estacionamento ou com o próximo motoqueiro que vai se materializar, repentinamente, no retrovisor direito. A rotina estressante do trânsito cansa e cansa muito.

Não é preciso ir muito além dessa experiência empírica para inferir que a economia cuiabana perde muito com essa falta de qualidade no transporte. Meus dias no trabalho foram muito menos produtivos e criativos. Certamente essa é a realidade da maioria dos trabalhadores cuiabanos. Isso sem falar nos acidentes de um trânsito que está sempre no limite.

Um time de pesquisadores da Universidade de Leeds, no Reino Unido, lançou um relatório sobre as vantagens econômicas e sociais das cidades de baixo carbono, ou seja, aquelas que investem mais em áreas verdes, soluções de infraestrutura para o transporte coletivo, entre outras ações sustentáveis. As pesquisas apontam que mais ruas levam, frequentemente, a tempos de viagem ainda maiores e atestam que o transporte público pode proporcionar uma redução drástica nos tempos de deslocamento de mais 50%, em alguns casos. E foram além: sabe a quanto podem chegar os custos com congestionamento? Até 1% do PIB na maioria das cidades desenvolvidas e a 10% do PIB nas cidades em desenvolvimento.

Triste constatar que Cuiabá segue ainda a lógica do transporte individual ao invés do coletivo. Calçadas verdes dão lugar há mais vagas de estacionamento. Mais ruas, avenidas e viadutos: mais carros. Mais concreto, menos verde. Um sistema que terá um novo colapso em um período de dois a cinco anos.

Voltando ao livro do começo do artigo, é ao descer do ônibus, no centro de Cuiabá, que a leitura de Mary Shelley faz ainda mais sentido. Tal qual Doutor Victor Frankenstein, que mal tinha coragem de encarar sua própria criatura de aparência repugnante, muitas vezes não olhamos para Cuiabá. Quanto menos andamos a pé, menos percebemos a cidade. A história de terror da autora inglesa traz, dentro de uma série de interpretações possíveis, uma reflexão profunda sobre os malefícios do abandono.

Por vezes, parece que os próprios moradores da cidade se acostumaram com serviços de baixa qualidade. E aí pode ser que o movimento de não encarar a cidade de frente seja apenas uma falta de coragem e baixa autoestima que nos impede de percebermos que merecemos muito mais do que está posto. Cuiabá parece carecer de um olhar mais carinhoso e amoroso. Com a percepção de que somos merecedores teremos a coragem de cuidar da nossa cidade e fazer as exigências necessárias para vivermos em uma cidade inovadora, com visão de futuro e acolhedora.

 

Juliana Carvalho é jornalista e mestre em Ciências da Comunicação pela Université Stendhal (Grenoble).

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui