O poeta Olavo Bilac ouvia as estrelas; o Caminheiro de Fernando Pessoa escutava a voz do vento. Guimarães Rosa conta a história de um menino que entendia a conversa dos bois.
Nós também podemos ouvir conversas estranhas, é só assuntar:
Eram duas vacas cruzadas, uma grande chifruda, outra menor, com a ponta do rabo cortada. Elas ruminavam capim e ideias, deitadas debaixo do angico à beira d’água.
–Pois a senhora viu? – dizia uma – aquela novilha topetuda que chegou dia destes?
—Vi. Mas não dei conversa.
— Nem deve… Ela tem uma prosa muito esquisita. Imagina que lá na fazenda de onde veio – ela falou não sei se é verdade – se uma vaca não emprenhar todo ano vai pro açougue.
Enquanto o Incra continuar assentando urbanos assessorados por ambientalistas, ninguém vai pensar em nos substituir por vacas mais produtivas
— Deve ser brincadeira dela. Quem ia fazer um trem desse?
— Pois ela garante que se a vaca perder uma só estação de monta, o dono a manda pro frigorífico e põe uma novilha no lugar.
—Estação de monta? Que falta de respeito…
— Eu falei isso, ela deu risada. Lá o fazendeiro fala que vaca só tem um objetivo: dar um bezerro por ano. Se não cumprir a meta vira bife.
— Se esse monstro capitalista fosse dono aqui deste lote de assentamento eu já teria morrido há muito tempo – retruca a vaca menor – em 10 anos só criei três bezerros.
— A senhora não vai acreditar – continuou a vaca grande – lá na tal fazenda eles querem que todos os bezerros nasçam na mesma semana, então aplicam uma injeção forçando a natureza das vacas. Com essa droga todas elas entram no cio no mesmo dia. Chamam isso de ciclar.
—Manda o fazendeiro ciclar a mãe dele. Isso é uma agressão e um desrespeito.
—Eu também acho. No dia do cio geral – ela me contou – vêm uns homens da cidade e colocam dentro das fêmeas com um canudo comprido, sabe o quê? Tenho até vergonha de falar…
— Fala logo, deixa de frescura…
—- Não tem bezerro perto? Eles põem porra de touro na periquita delas.
— Porra de Touro??
— Fala baixo, olha a bezerra da Mocha escutando. Daí a 21 dias as que não emprenharam vão entrar em cio novamente. Nesta hora os vaqueiros trazem um monte de touros e soltam no mesmo pasto das fêmeas. É a segunda chance: as que não emprenharem vão para o frigorífico, não importa a idade que tenham.
— Não acredito! A que ponto chega a ganância dos homens. Imagina se naquele dia uma vaca está indisposta ou não simpatizou com nenhum touro.
— Por isso que é bom esse nosso assentamento. Aqui ninguém se preocupa se parimos ou não. Dia desses eu ouvi o coordenador geral falando que vaca não é fábrica de carne para abastecer o McDonald e que os assentados não devem ceder ao imperialismo americano forçando os animais a produzirem mais.
— Graças a Deus o pessoal do MST que veio pra cá tem cesta básica para não se preocupar com produtividade. Enquanto o Incra continuar assentando urbanos assessorados por ambientalistas, ninguém vai pensar em nos substituir por vacas mais produtivas.
— Abaixo de Deus e de Nossa Senhora, só os ambientalistas e o PT podem nos ajudar.
RENATO DE PAIVA PEREIRA é empresário e escritor.