Família Bolsonaro, além de ser responsável pela maioria dos ataques, cria ambiente que permite crimes como aqueles praticados contra indigenista e jornalista
Por Janelson Ferreira*
Da Página do MST
“Agora podemos levá-los para casa e nos despedir com amor”. Foi assim que Alessandra Sampaio, esposa do jornalista britânico Dom Phillips, se expressou após a notícia de que os corpos de seu marido e do indigenista Bruno Pereira foram encontrados.
Bruno, 41, e Dom, 57, se encontraram em Atalaia do Norte no dia 1º de junho. Aquela não seria a primeira vez que a dupla viajaria junta pela região do Vale do Javari. O Vale é uma Terra Indígena, a segunda maior do Brasil, com 8,5 milhões de hectares – atrás apenas da Yanomami, em Roraima, com 9,4 milhões de hectares. E está localizada na fronteira com o Peru e a Colômbia, de modo que é considerada uma região extremamente sensível.
Primeiro, por ter a maior concentração de povos isolados ou de contato recente com o mundo não indígena. Segundo, por estar na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia, fato que desperta o interesse, frente a ausência do Estado, de narcotraficantes, madeireiros, garimpeiros e pescadores ilegais.
No dia 3 de junho, Bruno e Dom foram a um posto de vigilância indígena próximo ao Lago do Jaburu, o ponto mais distante em que chegaram na viagem. Dom colhia depoimentos para o livro que escrevia sobre a floresta. Profundo conhecedor da região, Bruno, exonerado da Funai, agora era consultor da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) e contribuía na organização de equipes indígenas para a proteção de seus territórios.
Finalizados os trabalhos no Lago do Jaburu, no dia 5, o indigenista e o jornalista fizeram o trajeto de volta para Atalaia do Norte. No caminho, pararam na comunidade São Rafael, que fica às margens do Rio Itaquaí. Lá, se encontrariam com “Churrasco”, líder comunitário da localidade.
O objetivo era fazer uma reunião, que já estava previamente agendada, com o líder comunitário acerca do desenvolvimento de projetos relacionados ao manejo de pesca, além de assuntos relacionados à vigilância contra crimes praticados na região. Dias antes, Bruno Pereira enviou uma mensagem para a Univaja, informando do encontro com “Churrasco”. Segundo o indigenista, o encontro poderia “dar algum problema”.
Mas, a reunião em São Rafael acabou não acontecendo. Informados pela esposa do líder comunitário que ele não se encontrava no local, Bruno e Dom partiram por volta de 6h, finalmente, para Atalaia do Norte.
No entanto, Bruno Pereira e Dom Phillips nunca chegaram à cidade amazonense. Imediatamente após a confirmação do desaparecimento, uma equipe da Univaja foi organizada para realizar as primeiras buscas. Como não obtiveram sucesso, no dia seguinte, publicaram um comunicado à imprensa relatando o desaparecimento.
Frente à inoperância e inércia do Governo Federal para mobilizar equipes de busca, foram os povos indígenas da região os primeiros a se organizarem e procurarem Dom e Bruno. Somente a partir da pressão nacional e internacional foi que a Polícia Federal e as Forças Armadas passaram a se envolver nos esforços para encontrar as vítimas.
Amarildo da Costa Oliveira, pescador, conhecido como “Pelado”, foi preso pela Polícia e confessou participação no assassinato do indigenista e do jornalista. De acordo com um depoimento de Amarildo, Jefferson da Silva Lima, que se entregou para a Polícia no último dia 18 de junho, ele pescava no Rio Itaquaí quando, ao encontrar com as vítimas, que passavam pelo local, começou a discutir com Bruno Pereira.
Após a discussão, teria havido uma perseguição entre os barcos. Em seguida, as vítimas foram assassinadas a tiros por Jefferson em um ponto do rio entre as comunidades São Rafael e Cachoeira.
Os corpos de Dom e Bruno foram então queimados e, posteriormente, esquartejados e enterrados em uma vala, em uma área de difícil acesso. Além de Amarildo e Jefferson, Osaney da Costa Oliveira, conhecido como “dos Santos”, que é irmão de Pelado, também foi preso, mas não confessou participação no crime. Todos os envolvidos são pescadores da região e podem estar ligados à pesca ilegal de pirarucu, espécie típica da Amazônia.
Para Claudelice da Silva Santos, líder extrativista na floresta Amazônica e coordenadora do Instituto Zé Cláudio e Maria, no Pará, o contexto atual na região é de terror. “Até o governo Bolsonaro, havia um controle, uma fiscalização, mas, após ele assumir a presidência, este controle simplesmente deixou de existir”, afirma a liderança.
“Além de ser um caso muito visível internacionalmente, ilustra também a dificuldade que podem ter jornalistas para cobrir certos tipos de assuntos em regiões tão hostis”, explica Emmanuel Colombié, que é coordenador do escritório para América Latina da Repórter Sem Fronteiras (RSF).
Segundo o jornalista, a RSF acompanha casos de jornalistas brasileiros de regiões como a do Vale do Javari que, por fazerem um trabalho de investigação sobre a mineração ilegal, grilagem, ataques contra o meio-ambiente, são alvos de ameaças, campanhas de desprestígio e perseguição jurídica. “Não são casos isolados, mas são, particularmente, violentos”, ressalta.
Dom Phillips questionou Bolsonaro sobre proteção à Amazônia
Dom Phillips, era britânico e vivia no Brasil há mais de 15 anos. Já foi colaborador de jornais como o “Washington Post”, “The New York Times” e “Financial Times”. Nos últimos anos, passou a ser colaborador do “The Guardian”, da Inglaterra.
Principalmente a partir de 2016, Phillips passou a escrever com mais intensidade sobre a crise ambiental, a Amazônia e as ameaças que a floresta enfrentava. Foi o responsável por importantes reportagens sobre denúncias acerca do avanço da criminalidade sobre a Floresta, principalmente, depois da eleição de Jair Bolsonaro. Após conhecer Bruno Pereira em 2018, viajou algumas vezes para o Vale do Javari.
No último período, estava trabalhando em um livro sobre a floresta, o qual seria intitulado “Como Salvar a Amazônia?”. O livro já tinha quatro capítulos completos e estava em fase de finalização. Inclusive, o motivo da ida ao Vale do Javari foi para realizar entrevistas para esta obra.
“O trabalho de Dom e todos os outros jornalistas que estão denunciando a situação da Amazônia, esta zona fora de controle do Estado, onde se mesclam grupos criminosos, traficantes, garimpo ilegal, invasão de terras indígenas, entre outros, é muito importante”, destaca Emmanuel Colombié.
Na opinião de Colombié, infelizmente, o assassinato de Dom e Bruno trouxeram à tona a situação complexa no Vale do Javari. “Este trabalho tem que continuar, é fundamental, e vamos lutar para isso”, destaca.
Em 2019, durante um café da manhã no Palácio do Planalto, em Brasília, DF, Phillips questionou diretamente Jair Bolsonaro sobre o desmatamento na floresta Amazônica. “Como o senhor presidente pretende convencer, mostrar para o mundo que realmente o governo tem uma preocupação séria com a preservação da Amazônia?”, perguntou.
“Primeiro, você tem que entender que a Amazônia é do Brasil e não é de vocês”, respondeu Bolsonaro. O governante ainda afirmou que nenhum país do mundo tem moral para falar da Amazônia. “Nós somos exemplo para vocês”, finalizou.
Para Pablo Nabarrete, professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Mídia e Cotidiano da Universidade Federal Fluminense (PPGMC-UFF), esta fala de Bolsonaro está conectada à situação complexa que vive o Vale do Javari. “Há quase 100 anos, o marxista peruano José Carlos Mariátegui, que chamava o nosso continente de Indo-América, já nos alertava que a questão indígena envolve principalmente a luta pela terra contra o capital”, lembra Nabarrete.
Segundo o professor, essa realidade une os movimentos camponeses e povos originários contra o bloco de poder hegemônico do capital, que possui como protagonistas o sistema financeiro, o capital internacional, a burguesia nacional, além de pescadores e garimpeiros, que são a parte mais visível deste processo. “Não são inocentes, devem ser julgados e punidos, mas é preciso seguir o dinheiro e chegar aos mandantes. Quem mandou matar Dom Phillips e Bruno Pereira e por quê? Quem mandou matar Marielle Franco e por quê? Sem responder a essas perguntas, não podemos ser um país civilizado”, ressalta.
Família Bolsonaro é a principal responsável por ataques a jornalistas
Após a confirmação do desaparecimento de Dom e Bruno, Jair Bolsonaro, sem nenhuma fundamentação, afirmou que ambos faziam “aventura” na região. Além desta declaração, Bolsonaro chegou a afirmar que Dom Phillips era “malvisto” pela população da região do Vale do Javari, por denunciar o garimpo ilegal.
“Eram malvistos pelos garimpeiros ilegais que Bolsonaro insiste em blindar com a máquina estatal e o poder coercitivo do Estado, que poderia investigar com seriedade estas constantes ameaças e ataques”, destaca Pablo Nabarrete. Para o professor, o objetivo de declarações como estas dadas por Bolsonaro é justificar o assassinato de dois profissionais sérios.
Além disso, estas falas buscariam criar as condições para “passar a boiada”, em alusão à declaração do ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ao se referir à possibilidade do governo aproveitar a pandemia de covid-19 para aprovar leis que flexibilizam crimes ambientais e apropriação dos bens da natureza. “Há uma rede complexa que envolve ilegalidades de pesca, garimpo, com a blindagem da máquina pública, o interesse, a exploração e expropriação perpetrados pelo grande capital nessas terras e suas riquezas naturais”, explica Nabarrete.
Desde que assumiu o mandato de presidente, Jair Bolsonaro e seus três filhos mais velhos: Flávio Bolsonaro, senador (PL-RJ), Carlos Bolsonaro, vereador (Republicanos-RJ) e Eduardo Bolsonaro, deputado federal (PL-SP), são os responsáveis pela maioria dos ataques a jornalistas no Brasil.
Segundo dados da Repórter Sem Fronteiras, no primeiro semestre de 2021, o número de ataques do chefe de Estado brasileiro contra a imprensa aumentou 74% em relação ao segundo semestre de 2020. Ao todo, Jair Bolsonaro realizou 87 ataques contra jornalistas, número que o torna o principal agressor naquele período.
Os postos seguintes de principais agressores são ocupados por Eduardo Bolsonaro (85 ataques), Carlos Bolsonaro (83) e Flávio Bolsonaro (38). Ao todo, foram 331 ataques realizados pela família Bolsonaro e ministros aliados à imprensa, um aumento de 5,41% em relação ao segundo semestre de 2020.
“Atualmente, é muito difícil trabalhar como jornalista no Brasil”, afirma Emmanuel Colombié. De acordo com o jornalista, hoje existe um discurso público por parte do Presidente, sua família e ministros próximos que tentam apresentar os jornalistas como inimigos dos interesses do país.
“Quando temos desde o mais alto nível do poder, um presidente que ataca, difama e humilha os jornalistas, obviamente, isto gera um ambiente que se transforma no mundo real e digital em ataques muito violentos”, aponta Colombié.
Em outro levantamento da RSF, foi apurado que, a América Latina é a região que concentra o maior número de jornalistas mortos por exercerem sua profissão. Entre 2011 e 2020, 139 jornalistas foram assassinados somente no Brasil, México, Colômbia e Honduras. A maioria destes profissionais realizavam investigações sobre a temática política, corrupção e crime organizado.
Para Pablo Nabarrete, existem alguns segmentos do jornalismo que estão mais expostos a ataques. “Quem cobre política e possui o mínimo de objetividade na apuração dos fatos, imparcialidade, como sabemos, não existe, é um alvo constante de ataques das facções bolsonaristas”, afirma Nabarrete.
Segundo o professor, além da pauta política, quem trabalha com investigações e denúncias com relação aos direitos humanos, meio ambiente, movimentos sociais, povos originários, também são alvos privilegiados. “Isso mostra como a comunicação comunitária, popular e alternativa é bastante vulnerável a esses ataques, pois, são comunicadores que geralmente não possuem uma rede de proteção, inclusive jurídica, como os profissionais da mídia hegemônica”, explica.
“O Governo atual não faz absolutamente nada para promover a liberdade de imprensa, pelo contrário, promove um ambiente de ódio”, ressalta Colombié. Já Nabarrete caracteriza o trabalho do jornalismo no Brasil afirmando que “sem dúvidas, é arriscado ser jornalista no nosso país”.
Até esta sexta-feira (24), a previsão é que os corpos de Dom e Bruno devem ser entregues às suas famílias. “Agora que os espíritos do Bruno estão passeando na floresta e espalhados na gente, nossa força é muito maior”, afirmou Beatriz Matos, antropóloga e esposa de Bruno Pereira.
*Esta é a última de uma série especial de reportagens publicadas na página do MST sobre o assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips. A série buscou abordar elementos que destaquem o cenário político, social e econômico que o Brasil vive atualmente e que estão conectados com as mortes do indigenista e do jornalista.
Confira a primeira reportagem aqui e a segunda aqui.
**Editado por Solange Engelmann