“Apoiantes de Bolsonaro dizem que o Supremo é oposição. Nada disso”

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O Brasil acabou de celebrar 200 anos. Apesar de todas as críticas que os próprios brasileiros fazem ao seu país, apesar também de alguns problemas de imagem que o Brasil tem ocasionalmente, são 200 anos que valem a pena celebrar, é um grande país que foi construído?

Sim, nós estamos a falar da que é hoje a oitava ou nona economia do mundo, que lidera em várias áreas, não só no setor do negócio agrícola, como é uma nação industrial que resolveu bem o encaminhamento institucional. São mais de 30 anos de Constituição dentro de um regime democrático – é uma das maiores democracias do mundo. Tem os problemas que todos nós conhecemos, as assimetrias, a desigualdade, mas é aquela coisa de olharmos o copo meio cheio ou meio vazio. Acho que o Brasil é muito efetivo em muitas áreas e também tem imensas potencialidades. Claro que precisamos de fazer corrigendas institucionais e nós estamos abertos a isso, já fizemos várias emendas constitucionais ao longo desse tempo. Temos graves problemas, por exemplo, na área político-eleitoral e isso tem vindo a ser corrigido. Para termos uma ideia, houve um dado momento no parlamento brasileiro em que tínhamos 32 partidos representados, o que leva a uma imensa dificuldade de governabilidade. Isso tem sido reduzido e calcula-se que nas próximas eleições, devido às cláusulas de barreira e outras exigências chegaremos a 12, o que para nós já vai ser um imenso progresso e significa também que as reformas estão em andamento.

Estando a caminho de umas eleições, considera que esta proliferação de partidos no Brasil, muitas vezes atingindo as duas dezenas, e até as três como referiu, fragmenta de tal forma o espaço parlamentar que dificulta a governação?

Com certeza. Isso é um grande problema que levou àquilo a que o famoso cientista brasileiro Sérgio Abranches chamou presidencialismo de coligação – independentemente do resultado das eleições, o partido do presidente da república conseguia no máximo 100 assentos em 513 no parlamento da câmara baixa. Isso significa que no dia seguinte às eleições começavam as negociações para fazer uma ampla coligação, às vezes até de contrários.

Nunca era possível fazer uma coligação com coerência ideológica?

Não era possível. É claro que nesses partidos havia muitos partidos “amorfos” do ponto de vista ideológico que constituíam grandes bancadas e aí se fazia a divisão de ministérios, que era a forma de construir essa maioria. Com um dado importante: o presidente muitas vezes não precisava de construir apenas uma maioria absoluta, ele tinha de apontar, devido à necessidade de reformas e da pormenorização do texto constitucional, para aquilo a que chamamos a maioria constitucional, que significa atingir os 3/5 de votos. Isso, para fazer as reformas que fizemos ao longo dos tempos, por exemplo, a previdência social, sobre a qual votámos mais de quatro emendas, a reforma administrativa. Em suma, o presidente precisava de negociar a maioria para ter 3/5 nas câmaras do Congresso.

Quando fala em negociar, há uma fama que se agarra muito à política brasileira que é a da corrupção. Não vou falar de casos particulares, mas há um célebre, o chamado Mensalão. Aí era claramente um pagamento que era feito para garantir lealdades para se poder governar?

Aparentemente o PT quis romper, até talvez devido a uma mentalidade hegemónica, com aquela ideia que já era antiga da distribuição de ministérios aos apoiantes, e tentou então alimentar as bancadas com um tipo de subsídios do género “vocês não têm ministério, mas vão ter um subsídio para as campanhas ou para manter a máquina partidária”. Só que isto leva a problemas desde a origem do dinheiro, à maneira de fazer essa distribuição… A partir daí começam a surgir todos os problemas conhecidos que levam a esse processo que foi julgado no Supremo Tribunal Federal.

O senhor foi nomeado ainda no tempo do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), o qual é muitas vezes referido, neste Brasil muito polarizado, como o último presidente que conseguiu ter aquela gravitas institucional. Qual é a sua memória de FHC como presidente?

É extremamente positiva. Li uma entrevista do Armínio Fraga, que foi presidente do Banco Central [do Brasil] num daqueles momentos graves, em que ele dizia que, considerando os tempos mais recentes, parece que vivemos naquele momento um hiato, uma exceção, tendo em conta os debates racionais, a tentativa de fazer uma construção responsável. Foi quando se aprovou, por exemplo, a lei do combate à inflação e se criaram as bases para a estabilidade financeira, a lei da responsabilidade orçamental para evitar que houvesse esse festival, que havia no passado, de bancos estaduais que faziam emissões, o que gerava uma série de problemas. É nessa altura que se constrói, nesta fase mais recente, o Brasil moderno. Se temos alguma estabilidade hoje no Brasil, se temos moeda, é graças a esse período. Tomam-se providências também na área militar, um tema muito sensível para nós desde a república; cria-se o Ministério da Defesa, conjugando as três forças – exército, marinha e aeronáutica, que fica inicialmente sob o comando de um civil. Em suma, pensam-se várias coisas e também, embora depois se atribua muito, e talvez com alguma justiça, ao PT a criação da chamada Bolsa Família, é no governo de Fernando Henrique que se iniciam essas medidas. A ideia do estímulo às pessoas de baixos rendimentos; a ideia até de um tipo de contraprestação – incentivos àqueles pais que mandavam filhos à escola… Depois, isso consolida-se no governo de Lula. Dentro das limitações fez-se muita coisa. Eu considero, com justiça, que Fernando Henrique é um pouco o pai dessa nova república brasileira, até mesmo em termos de civilização. Havia umas relações muito cordiais com todas as forças, fossem da oposição ou da situação.

Acha que esse legado de Fernando Henrique Cardoso, que muitas vezes é referido – até quando se fala dos anos de Lula como presidente se diz que as bases foram lançadas por ele -, lhe dá hoje em dia uma voz que os brasileiros ouvem, ou seja, se ele indicar uma preferência por um candidato presidencial pode fazer a diferença ou já não tem influência?

Acho que tem influência, sim, dentro de um grupo intelectual, e acho que ele sofreu um pouco o défice da estrutura do seu próprio partido. O PSDB era um partido de quadros, não era um partido de massas, ao contrário do partido do presidente Lula, o PT. Tenho mesmo a convicção que o partido não soube fazer a defesa do seu legado, por exemplo, as privatizações. Basta ver que um dos candidatos da associação, o do PSDB, hoje candidato a vice do presidente Lula, Geraldo Alckmin, a um dado momento veste a camisola do Banco do Brasil dizendo que não seria privatizado ou coisa do género, como se fosse uma crítica aos trabalhos anteriores. Na verdade, se o Brasil se modernizou com a privatização de grandes empresas – toda a área de telecomunicações -, as bases jurídicas foram criadas no governo de Fernando Henrique Cardoso, mas o partido não soube defender esse legado e, de alguma forma, até se mostrava envergonhado. Isso talvez tenha que ver com a oposição massiva que o PT fazia, representando sindicatos, e também talvez com as dissidências internas. É possível que isso explique um pouco esse esquecimento do Fernando Henrique Cardoso, o que é uma pena até para o nosso processo civilizacional. Embora ele tenha mantido muita influência, sobretudo em São Paulo, onde vive, no PSDB. Até hoje, o PSDB nunca deixou de governar São Paulo, o que significa um pouco mais de um terço da nossa economia.

O senhor apanhou a chegada de Lula à presidência em 2003, à quarta tentativa. Lula ficou depois com a marca de ter transformado o Brasil. Lembro-me, inclusivamente, que no último ano como presidente, o Brasil cresceu acima de 7%. Na altura, Lula era acarinhado tanto pelo americano Barack Obama, como pela China e pela Rússia. Como explica que a política brasileira dos últimos anos se tenha transformado quase numa luta entre os pró-Lula e pró-PT e os anti-Lula e anti-PT, nesta clivagem extrema?

O governo de Lula tem méritos inegáveis, diferentemente até do governo de Fernando Henrique Cardoso, que enfrentou sucessivas crises internacionais – no segundo governo tivemos inclusivamente uma crise cambial seriíssima, afetada pela crise mundial. O segundo governo é marcado por sucessivas crises, mas eu acho que não teve problemas maiores graças ao prestígio de Fernando Henrique no plano internacional, que teve o aval explícito de Clinton junto do FMI. Na transição, Fernando Henrique faz uma coisa muito organizada e Lula recebe e prossegue na política de responsabilidade orçamental, de superavit primário.

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