A impossibilidade da conversão do flagrante em preventiva “de ofício” pelo Juiz

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Por Valber Melo e Fernando Faria |A prisão parece ser o tema central do Sistema de Justiça Criminal. Não por acaso as sucessivas alterações legislativas. O argumento da superação da lei pela mutação da sociedade não resume uma verdade nem de longe aceitável. O hiato entre as mudanças legais não se sustenta nesse fundamento. Bem ao contrário, a rotatividade dos preceitos processuais denota a incompetência do texto anterior ou até mesmo revela a idiossincrasia punitivista dos governantes de ocasião, preocupados em marcar posição dentro da retórica da guerra contra o crime, do bem contra o mal etc.

A centralidade é perigosa, sobretudo em países periféricos com números expressivos de encarceramento, como é o caso do Brasil. Considerando a custódia em estabelecimentos penais e outras carceragens, o INFOPEN 2019 (depen.gov.br/DEPEN) aponta que o Brasil possui uma população de 773.151 pessoas humanas privadas de liberdade em todos os regimes.

O Brasil possui 800.000 pessoas privadas de liberdade. Agora, imagine-se: segundo dados igualmente oficiais, o Brasil possui hoje cerca de 210 milhões de habitantes (ibge.gov.br). Com uma aritmética básica podemos concluir que, para cada grupo de 260 pessoas, ao menos uma está encarcerada.

A concreta imaginação não se encerra por aqui: os dados do INFOPEN não se referem aos adolescentes e crianças, que são penalmente inimputáveis, sujeitos ao regramento da Lei Federal 8.069/1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, art. 104).

O encarceramento no Brasil atingiu índice indiscutivelmente alarmante. O discurso do encarceramento em massa de pessoas não convence nem mesmo estatisticamente; ou seja, sucumbe até mesmo pela lógica atuarial. Há quem sustente que a situação carcerária no Brasil evidencia crime contra a humanidade (Cfr. Maurício Stegemann Dieter, por exemplo).

A Lei Federal 13.964, de 24 de dezembro de 2019 (pacote anticrime), inovou em questões sensíveis para a dogmática penal ortodoxa brasileira. O Sistema de Repressão Penal, entendido como o espectro de leis penais/processuais penais, enfrenta indiscutível crise. O Estado brasileiro adotou criminalização primária exagerada, sobretudo contra parcela vulnerável da sociedade, jovens negros, pobres e marginalizados; prova disso é a edição da nova lei de drogas, verdadeira cruzada contra essa “população”.

Dentre as diversas alterações no Sistema de Repressão Penal encontra-se a prisão preventiva, considerada medida cautelar típica em matéria penal, que se operacionaliza na privação temporária da liberdade da pessoa humana que tenha contra si um juízo investigatório ou de imputação penal, desde que então presentes os requisitos estritos disciplinados pela lei, como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado.

Ao contrário do que previa a redação anterior do art. 311 do CPP, agora o Juiz não poderá decretar a prisão preventiva por conta própria (de ofício), sem pedido das partes, da autoridade policial ou do órgão da acusação oficial (MP). Prevê a norma que em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.

Perceba-se que a nova redação do art. 311 do CPP suprime o termo “de ofício”, afastando a cognição judicial da decretação da prisão preventiva sem pedido expresso e fundamentado dos atores processuais arrolados na cabeça do preceito, quais sejam: Ministério Público, querelante ou assistente ou a autoridade policial. É dizer, legalmente, ao Juiz não é entregue a iniciativa de determinar a prisão preventiva da pessoa humana sem requerimento expresso e motivado de um dos citados.

A inovação é axiomática. Trata-se de alinhamento com a ideia de separação das funções (modelo acusatório) e das fases da persecução penal. A fase pré-processual do estabelecimento do “juízo de imputação penal” (IPL ou PIC conduzido por membro do MP) é ou deveria ser tutelada pelo Juiz das Garantias (CPP, art. 3º-A e ss.). Já a fase processual seria aquela encarregada da ação penal propriamente dita, com o necessário rigor do princípio do contraditório.

Embora claro que a nova redação do art. 311 do CPP proíbe que o Juiz decrete a prisão preventiva de ofício, sem requerimento daqueles arrolados na cabeça do preceito processual, recente posicionamento do STJ nos faz parar para refletir: quando da convalidação da prisão em flagrante, pode o Juiz decretar de ofício uma prisão preventiva? Em palavras outras, se não houver representação da autoridade policial ou requerimento do representante do Ministério Público, o Juiz pode, após conclusão da legalidade da prisão em flagrante, decretar a prisão preventiva?

Consultando a jurisprudência do STJ, especialmente das suas duas turmas com competência criminal (5ª e 6ª), pode-se observar vários julgados passando ao largo da atual redação do art. 311 do CPP, permitindo que o Juiz, mesmo sem provocação, ao receber o auto de prisão em flagrante, converta a prisão em flagrante em preventiva – Cfr. RHC 120.281/RO, julgado a 05/05/2020 e RHC 121.791/RS, julgado a 11/02/2020. Ou seja, todos os julgamentos foram concluídos após a vigência do pacote anticrime, em 23/01/2020, o que está a revelar descompasso normativo.

Felizmente, essa questão já fora examinada pelo STF depois do pacote anticrime. Trata-se do julgamento do HC 186.421/SC, em que o Ministro CELSO DE MELLO, em sede de liminar, entendeu incabível que o Juiz converta de ofício a prisão em flagrante em prisão preventiva.

Da leitura da decisão, pode-se extrair que a Lei Federal 13.964/2019, ao suprimir a expressão “de ofício” que constava do art. 282, §2º, e do art. 311, ambos do CPP, vedou, de forma absoluta, a decretação da prisão preventiva sem o prévio requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público, não mais sendo lícito, portanto, com base no ordenamento jurídico vigente, a atuação “ex officio” do Juízo processante em tema de privação cautelar da liberdade.

E aqui não há que se falar em poder geral de cautela do Juiz que atua na seara criminal, vez que não há previsão legal nesse sentido, ao contrário do que consta do CPC (art. 139, IV). Os postulados da tipicidade processual e da legalidade estrita impedem o socorro às normas processuais não penais em detrimento dos interesses do investigado/acusado, negando acesso aos provimentos cautelares inominados/atípicos, mesmo por combinação de leis, como a adoção da suspensão da CNH em ritos que são estranhos ao regime dos crimes de trânsito.

Não é demais lembrar que o direito repressivo criminal tem na linguagem estrita o limite do exercício do poder punitivo. Aberturas semânticas direcionadas à redução dos direitos fundamentais textualizados dos investigados/acusados não estão de acordo com o devido processo legal, cuja violência não deve sofrer institucionalização por parte do Estado, pena de atingimento em nível severo do núcleo essencial dos direitos elementares do ser humano submetido ao processo penal.

Em palavras outras, o Sistema de Justiça Criminal Acusatório, marcado pela separação das funções de investigar, acusar e de jugar, impede a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, de ofício, sem prévio e fundamentado pedido do órgão da acusação oficial ou dos demais atores elencados pelo art. 311do CPP. 

Não deve ser negada a conclusão de que a Constituição da República instituiu a tipificação legal (estrita) e a legalidade (estrita) em matéria penal, ampliando as garantias destinadas às pessoas humanas, integrando o devido processo legal, inexistindo o poder geral de cautela, sobretudo para impor medida cautelar restritiva de liberdade da pessoa humana sujeita ao sistema de repressão penal oficial.

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VALBER MELO é advogado criminalista. Doutor em Direito. Professor de Direito Penal e Processo Penal. 

FERNANDO FARIA. é advogado (UFMT). Mestrando em Direito Penal (UBA). 

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