É com um pé em Portugal e outro no Brasil, de olho nos patrícios e nos locais, que irei tocar essa coluna. Ela não terá só reportagens ou crônicas. Será mais que um relato frio e menos do que um tratado de geopolítica. Vai tratar dos temas sérios, dos irrelevantes, dos espantosos, dos frívolos e dos essenciais. Não nessa ordem, não na mesma extensão, mas com igual galhardia, graça e gana de aprender. Boa leitura.
‘Não vai ter golpe’, diz Gilmar Mendes Era quase hora do almoço quando o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, chegou à varanda do café em frente a uma praça florida, no bairro do Príncipe Real, em Lisboa. Ele veio caminhando desde seu apartamento, não distante dali, com a nonchalance de quem flanava pela vizinhança. Vestia calça jeans, camisa listrada, um blazer azul, calçava tênis cinza e carregava uma mochila preta presa às costas por apenas uma das alças — o que lhe conferia um certo ar juvenil. Sem a toga preta dos magistrados e a expressão sorumbática sempre retratada em fotos — quando ele deixa o lábio inferior proeminente, como se estivesse fazendo um bico emburrado —, ele aparenta menos idade. Tem 66 anos.
Dali a poucos dias, participaria do Fórum de Integração Brasil Europa, evento organizado por ele há mais de uma década, cujo tema em 2022 seria “Os Desafios do Desenvolvimento: O Futuro da Regulação Estatal”. Diplomatas, empresários, políticos, juízes e advogados tratariam de questões do Direito em tópicos como: nova economia, big techs, criptomoeda, saneamento básico, mudanças climáticas, políticas tributárias, inovação, inteligência artificial, saúde, energia.
Ele e a mulher, Guiomar, adoram Lisboa e planejam se estabelecer na cidade depois da aposentadoria. Contou que, diferentemente de Brasília, aqui dorme melhor, vai à academia todas as manhãs, come mais em casa do que em restaurantes, dispensa salamaleques do poder (já teve que se valer de seguranças do STF em viagens, quando era hostilizado na rua devido a decisões polêmicas). Pediu ao garçom, usando o vocabulário local, “pastel” de bacalhau e “sumo” de laranja.
Quando conversa, Mendes evita o olhar do interlocutor. Fala baixo, com a cabeça virada para o lado, como se estivesse se dirigindo a um espectro que só ele enxerga. Interrompe suas frases no meio, calando-se imediatamente quando a outra pessoa o corta para palpitar — o que é surpreendente. Por duas vezes, abriu um largo sorriso ao receber mensagens da neta, que está na Alemanha e lhe escreveu no idioma de Goethe. Durante duas horas, falou-se sobre o estado das instituições, o legado da Lava Jato, eleições, o futuro do país e de Bolsonaro.
Na última terça-feira (19), quase uma semana depois de nosso encontro, por volta das 2 da manhã, recebi uma mensagem dele no celular. Queria esclarecer alguns detalhes da conversa. Na quarta-feira, encontramo-nos no local do evento, o Hotel Pestana, no bairro da Ajuda — que estava apinhado de brasileiros de todas as estirpes. A entrevista foi editada e condensada para melhor compreensão. Daniela Pinheiro: Como explica a situação do Brasil aos estrangeiros? Gilmar Mendes: A questão é como chegamos até aqui. Foi a derrocada da política, tal como a conhecíamos, na medida em que todas as forças políticas, de alguma forma, estiveram comprometidas nesse processo.
As instituições estão corrompidas? Não. O problema da corrupção, o problema da criminalização da política, não é esse. A política perdeu espaço. Ninguém imaginava que isso ia ocorrer. Que se ia chegar a uma eleição em que os atores principais seriam de fora. A eleição de 2018 foi isso. Não foi só eleger Bolsonaro, foi eleger os PMs, os coronéis, os pastores evangélicos. É um novo perfil: conservador, populista. É um novo paradigma. E, obviamente, a Operação Lava Jato teve um papel enorme nesse contexto. Como? A Lava Jato queria ter centralidade e trazer novos elementos para a política. No início, já se viam sinais de que seus protagonistas queriam entrar no processo político. Quando o Ministério Público lançou com alarde a tal das “10 medidas contra a corrupção”, aquilo já era um pré-programa eleitoral. E isso precede Bolsonaro. Aquilo era o que eles planejavam fazer no Brasil nos anos seguintes. Ironicamente, defendiam pontos, como o aproveitamento de provas ilícitas, que, depois das revelações da Vaza Jato, não querem mais que valham — porque ficou ruim para eles. Quando fala “eles” refere-se a Moro, Dallagnol, a força-tarefa de Curitiba?
Sim, Moro, Dallagnol, todos, né? Quem foi o relator desse projeto — e que perdeu — na Câmara dos Deputados? Onyx Lorenzoni, que virou ministro do Bolsonaro. Estava tudo já em gestação. Depois, o que foi aquela tal de Fundação Dallagnol? [Seria a criação de uma fundação privada com fins públicos, fomentada com dinheiro repatriado da corrupção na Petrobras através de um acordo com o Departamento de Justiça dos EUA. O STF rejeitou a proposta.] Aquilo era coisa perto de 3 bilhões de reais.
Eles diziam que a fundação ia criar uma cultura anticorrupção. Como? Pagando palestras, conferências para eles falarem o que quiserem por aí. Ao fim e ao cabo, isso seria um fundo eleitoral. Acha mesmo? Tenho certeza. E, na perspectiva de hoje, ainda há outro fato pouco falado, que envolve a criação de outra fundação com os mesmos fins. Envolvia a Transparência Internacional e o Joaquim Falcão [o jurisconsulto era considerado assessor informal da Lava Jato]. Queriam pegar os recursos da Operação Greenfield com a JBS e fazer igual.
Nos áudios da Vaza Jato, esse tal Bruno [Brandão], da Transparência Internacional, aparece dizendo “vamos eleger uma bancada que favoreça os nossos projetos”. Se a gente somar essas duas fundações, dá coisa de quase R$ 5 bilhões. Então, estava se desenhando uma nova força política. Aí, tem a facada e tudo deságua na eleição do Bolsonaro.
De quem é a responsabilidade? Não tem. A atividade política como um todo já tinha sido destroçada. Por exemplo, na questão das acusações, uma coisa é a corrupção per se, outra poderia ser a irregularidade do caixa dois. Num dado momento, tudo foi colocado como se fosse a mesma coisa. Não é a mesma coisa. Essa falsa equivalência foi mortal. E o discurso político não teve capacidade de neutralizar ou esclarecer isso.
Nem a imprensa? A imprensa se associou à Lava Jato. Talvez, a maior sofisticação desse projeto tenha sido seu consórcio com a mídia. E, naquele momento, todos queriam ser Moro. Lembra do Alvaro Dias, candidato a presidente, se vestindo de camisa e blazer preto, uniforme de Moro? E o procurador da República [Rodrigo Janot] — era ele mesmo quem dizia isso — estava bêbado às três da tarde todos os dias. Então, a pessoa que coordenava as principais instituições de investigação do País vivia assim.
A miopia institucional era geral. Inclusive nessa transição Lula-Dilma. Qual foi a miopia institucional ali? Em algum momento, o governo Dilma decidiu criar uma marca forte. E algum gênio sugeriu que a Dilma se associasse ao combate à corrupção. É quando aprovam a Lei de Acesso à Informação, por exemplo. Em paralelo, o Ministério Público passa a clamar por leis de combate à corrupção.
E eles [governo Dilma] deram tudo sem nenhum critério. O governo Dilma deveria ter feito diferente? Não havia nenhuma coordenação e entendimento do que estava acontecendo ou podia acontecer. No fim, foi esse grupo do Moro, dos procuradores, que escreveu a lei da delação premiada, por exemplo. Fizeram o que quiseram. Não houve massa crítica. Tanto é que passaram a escrever as delações e dar os benefícios, segundo os critérios que entendiam. No final, tive a impressão de que a armadilha se fez num longo processo. Essa desinstitucionalização foi construída lentamente com a colaboração do próprio governo do PT.
Lembro-me de conversar com líderes do MDB, por exemplo, que eram contra a lei da delação, mas que diziam que a própria Dilma exigia que fosse aprovada. Eles queriam parecer puros, honestos? É. E faltou, por parte do sistema político, pessoas com visões holísticas com capacidade de perceber que aquilo era uma caminhada rumo ao autoritarismo.
O autoritarismo de toga? A República de Curitiba era um modelo autoritário, totalitário. Quem era preso só era libertado com delação premiada. Em outros tempos, isso seria chamado de tortura. E isso foi referendado com filhotes espalhados Brasil afora. Isso só acontece quando o sistema político está corrompido. Deveríamos ter feito essa entrevista antes porque agora, Moro nem sabe nem se vai sair para algum cargo eletivo. (Ele faz o bico sorumbático.) Acha que Lula e Bolsonaro é “uma escolha difícil” ou “são iguais”, como se tem repetido por aí? Não acho que sejam iguais. Na verdade, têm propostas muito diferentes. E formas de lidar com a política diferentes também. Bolsonaro tem uma proposta que poderia se avizinhar dessa chamada democracia iliberal, que beira o autoritarismo.
O Lula lidou com o sistema político de uma maneira muito clara e com as negociações típicas desse processo. O que me parece haver é um eco da impotência — gostariam de construir uma terceira via –, mas não se consegue produzir outro resultado. No 2º turno das eleições francesas no próximo domingo (24), passa-se o mesmo. O mauricinho Emmanuel Macron e a ultradireitista Marie Le Pen estão sendo considerados iguais. Exatamente. E faz-se a lógica da segunda melhor opção para cada.
Eu me lembro nessa eleição Bolsonaro x Haddad, quando a desculpa era “ah, mas o Alckmin não se viabiliza”. Ué, quando se faz esse raciocínio, é impossível mesmo ele se viabilizar. Obviamente, Macron está fazendo uma campanha que atrai eleitores de esquerda e também de direita para parar a Le Pen.
Isso é um bom conselho para que as forças democráticas se unam em torno de Lula para tirar Bolsonaro? Não vou fulanizar. Max Weber escreveu sobre a ética da convicção e a ética da responsabilidade. Na política, é preciso ter um pouco de ética da responsabilidade para se ter esse approach programático e pragmático. É preciso fazer essa neutralização. Se Bolsonaro for reeleito, ele terá direito a mais duas nomeações para o STF, o que lhe daria a maioria na Casa. Isso significa o primeiro passo para a autocracia? Não vejo, necessariamente, essa fidelização do nomeado a quem o nomeia. Não há essa correia de transmissão.
Quando se está no tribunal, naturalmente há um distanciamento, cada um vai refletindo à sua maneira, cada qual tem sua própria concepção das coisas. É até uma ironia. A prisão do Lula foi decidida por 6 a 5. Dos seis, cinco foram indicados pelo PT.
Claro, são outras circunstâncias históricas. Também há um diálogo difuso da própria sociedade com a Corte, um tipo de pressão. Isso faz com que as pessoas indicadas também sejam sensíveis a isso, ao que se espera de uma comunidade de juristas. Bolsonaro prepara uma grande confusão, a oposição faz conchavos de cúpula e as instituições estão tronchas. O que fazer? Não acredito que isso tenha consistência. As pessoas acreditam no processo eleitoral. Mas muitos acreditaram na mamadeira de piroca, desculpe.
As fake news tiveram um efeito grande nas eleições passadas e vão ter nessas também. Confio na Justiça Eleitoral. Vai ter golpe? Não, não vai. Eu aposto na resistência das instituições. Acho que é um processo. Nesse momento, o Bolsonaro está muito debilitado, o viés ficou muito debilitado. Em termos orçamentários, por exemplo, eu estava conversando com o Felipe Salto, que foi nomeado ontem secretário de Fazenda e Planejamento de São Paulo, e ele disse que tem algum investimento, com superávit por conta da arrecadação.
Mas é a inflação. Não é bom. Bolsonaro chegou com o apoio das bancadas temáticas e, com risco de impeachment, fez a viagem rumo ao Centrão. Esse pessoal não embarca em aventuras. E o que se fala de Bolsonaro ter com ele a polícia, as Forças Armadas, tudo isso ajudaria uma situação de negação do resultado eleitoral? Hoje há um certo equilíbrio entre as polícias.
A federação está em mãos de diferentes forças partidárias. São Paulo, por exemplo, está nas mãos do PSDB. É uma grande força policial, com bom controle. Portanto, não vejo isso acontecendo. No começo, pode ter havido uma contaminação porque eles elegeram muitos policiais, mas em quase quatro anos, não se produziu subordinação ao governo federal.
Não há razões para se pensar em um cenário antidemocrático, caso ele perca as eleições? Somos uma democracia jovem, devemos estar atentos a toda sorte de desvios. Quem iria dizer que tivemos muito próximos de um modelo ditatorial vindo de procuradores e juízes? Alguma vez acreditou no impeachment de Bolsonaro? Não.
Mais pelo sentimento de exaustão geral do que por outra coisa. Um impeachment requer uma mobilização enorme, negociações, ninguém aguenta mais. Por isso, tenho defendido que, se tivermos uma crise de governabilidade, que resolvamos na linha da substituição do chefe de governo e não do chefe de Estado. Um impeachment é sempre um elemento muito traumático.
Opositores de Bolsonaro sonham com o dia em que ele terá que responder nas letras da lei sobre as atrocidades cometidas, sobretudo no que diz respeito à pandemia. Existe a possibilidade de ele parar num tribunal internacional, em Haia? Há muitas investigações em andamento. Houve a CPI da Covid, há muitos inquéritos, mas é preciso fazer uma tipificação do crime. A discussão política é uma, a jurídica é outra.
Qual o crime? Adotou uma política que causou muitas mortes? É homicídio? Doloso? Culposo? Tudo isso precisa ser discutido. Isso ficou muito claro na prisão do Lula. Falava-se de várias situações que o incriminariam. Que adotou políticas que o favoreceram, que teve um benefício. E o benefício era o quê? O triplex. Então, isso é a tipificação. Se não for assim, ficamos sempre nesse cenário do debate difuso das imputações. Por que isso não aconteceu até hoje? Há muitos inquéritos, eu não estou bem informado nos detalhes. Há também muita queixa sobre a inércia, omissão, da Procuradoria-Geral da República, que deveria cuidar disso.
O Ministério Público poderia também estar discutindo isso, mas não está, aparentemente. Acho que tudo isso virá no pós-governo, como aconteceu com Lula. Ele era um potencial candidato à Presidência da República.
Outro dia, li um artigo interessante dizendo que as pessoas com alguma projeção acabam atraindo investigações. O jurista que escreveu até avaliava que o julgamento acaba não sendo um julgamento equilibrado. Há coisa mais estapafúrdia do que aquela prisão do Michel Temer, pelo juiz Bretas, a pedido daqueles procuradores do Rio? Aquilo foi absurdo e foi logo após a saída do governo. Aquilo foi a espetacularização, ativa, problemática.
Obviamente estamos longe de qualquer ideal de Justiça com isso. Tem-se a impressão de que nada mais é grave, que não há mais limite e a impunidade é geral. Algumas falas e atitudes de Bolsonaro seriam impensáveis no passado. Ou estou errada? De novo, acho que há uma sensação de exaustão geral que promove esse tipo de impressão.
A desconfiança, por exemplo, criada pelo anticlímax da Lava Jato, nada era o que parecia ser. Vivemos um momento de ceticismo muito grande. Acho que faz parte desse momento cultural histórico, apenas. As instituições estão funcionando? Sim, o inquérito das fake news é um bom exemplo. Inicialmente, tinha uma resistência enorme no próprio STF. Quando foi julgado, foi aplaudido por todos — só o ministro Marco Aurélio votou contra.
A Vaza Jato, que mudou tudo, é a instituição imprensa cumprindo seu papel. O governo Bolsonaro perdeu muitas medidas provisórias no Congresso ou que foram suspensas pelo STF. Também houve vários projetos rejeitados em plenário. Há um caso específico, que está pendente no tribunal, que é a questão do porte de armas.
É um assunto muito sensível, envolve armas, pessoas, milícia, crime organizado. Pode ter algum déficit pontual em alguns assuntos, mas, sendo justo, acho que as instituições têm atuado satisfatoriamente. Como está o clima hoje no Supremo Tribunal Federal? Não tem mais aquelas suas brigas com o ministro Luís Roberto Barroso.
icou tão sem graça? (Risos) Um tanto… Acho que o tribunal está mais unido. Pode ser um efeito contrário desse quadro da animosidade geral trazido pelo Bolsonaro. Também tinha muita disputa em torno dessa coisa de defensores ou não da Lava Jato. E com a Vaza Jato, ficou um apoio meio envergonhado, acalmaram-se os nervos.
Na sexta, por telefone, Gilmar Mendes preferiu não cravar nada a respeito do indulto do presidente a Daniel Silveira. “Não é o momento de se comentar isso. A Corte precisa se reunir, precisa estar junta, porque essa votação de quarta-feira já foi muito difícil.”
DA REDAÇÃO COM UOL