Controle social, segurança pública e intervenção federal

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IGOR COSTA OLIVEIRA

Acadêmico de Direito no Paraná

Baseado em carne viva e fatos reais / É o sangue dos meus que escorre pelas marginais”[1].

Os dois primeiros versos da música, da artista Linn da Quebrada[2], denunciam a violência institucional exercida contra os cidadãos da periferia brasileira, composta, em sua maioria, por negros e pobres. As rimas faladas, como elemento característico do estilo musical, descrevem sem censura a sua realidade como moradora da favela e o extermínio legitimado dos “seus”, referindo-se a todos os moradores de periferias urbanas, rotulados como grupos “perigosos”, discurso fatalmente instrumentalizado como recurso político e para justificar políticas autoritárias de controle social. Tal discurso contribui para a construção da “cultura do medo”, mecanismo indutor da criminalização e vitimização dos periféricos, reproduzido para justificar a violação constante dos direitos fundamentais desta parcela da população brasileira.

No dia 16 de fevereiro de 2018, Michel Temer decretou intervenção federal na área de segurança pública do Rio de Janeiro. Resulta, no entanto, que apesar da previsão constitucional, as motivações e requisitos jurídicos, levantados para a intervenção federal, revestem-se da difusão do medo ao suscitar a insegurança e violência urbana como estratégia política. Com isso, o decreto reafirma, para além os efeitos jurídicos da medida de exceção, uma violência individual, estrutural e institucional[3] que ameaça os direitos e garantias de toda a população do Rio de Janeiro, sobretudo das populações negras e pobres, moradores de favelas e periferias urbanas.

A demanda por segurança no Rio de Janeiro emerge de uma interpretação crítica do contexto político brasileiro de ruptura institucional, pois configura uma ameaça à própria democracia, na medida em que a concentração de controle social pelo Estado reforça a crença do efeito intimidante produzido pela severidade das penas e a atuação de agências como Forças Armadas, embasando o apoio popular às políticas de segurança que suspendem a legalidade e abre portas ao extermínio da população tida como “incivilizada”. Provoca, também, uma discussão das abordagens tradicionais acerca da violência urbana e o ideário hegemônico definido pela racionalidade instrumental, com emoções e valores, e muitas vezes, demandas inexistentes, que apoiam as concepções de políticas de segurança pública utilizadas pelo governo Temer.

O problema da segurança pública estruturado a partir desses pressupostos é concretizado de modo reducionista e instrumental. São, na verdade, instaurados com intuito de salvar moralmente, ou (re)civilizar, as classes populares, propondo operações que tomam a insuficiência do sistema de justiça criminal para construir um imaginário de combate a insegurança, eminentemente marcado pela visão colonizadora e escravagista. Não é à toa que a música chama atenção em outros versos “Fatura da viatura, que não atura pobre preta revoltada/ Sem vergonha, sem justiça, tem medo de nós/Não suporta a ameaça dessa raça(…)”. Ainda que a justificativa encontre respaldo na segurança como um direito fundamental e social garantido pela Constituição de 1988, o problema está na mentalidade militarizada e preconceituosa na história e organização das políticas, sendo incompatível a redemocratização. Nesse sentido, diversas são as propostas de uma nova forma de fazer política em segurança no Brasil que enfatizem a necessidade de uma reforma profunda nessas áreas.

Outro ponto suscitado decisivo em questão é que o Decreto 9.288/2018, instituído sob o pretexto de “pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública” é a nomeação como interventor o general do exército Walter Braga Netto, que exercerá a função pelo tempo de vigência da medida, até o dia 31 de dezembro de 2018. No entanto, a natureza do cargo do interventor é civil, pois trata da substituição de uma autoridade civil por uma federal civil. O interventor pode ser militar, mas precisa se submeter as regras e à jurisdição civil. Assim, o emprego das Forças Armadas e do uso da polícia militar é, portanto, um atentado à Constituição, ao poder civil e à democracia.

Diante disso, é notório que as medidas adotadas na intervenção afetam direitos humanos fundamentais. A erosão na noção de cidadania e a política de massacre aos pobres e negros, com o decreto de intervenção militar, desencadeia outras violações aos direitos humanos não só no âmbito interno, mas também internacional, revelando a gravidade da medida e suas prováveis consequências.

Não há novidade alguma nessa emergência da segurança urbana, mas a ressignificação pelo governo federal do sentido de (in)segurança e de prevenção, diante da representação da violência, é que permite sustentar a militarização e a violência institucional como solução, (re)produzindo a segregação sócio-espacial urbana e punitiva. Ademais, com a reestruturação do capitalismo neoliberal e as novas formas de controle social, os rótulos na construção do estigma do sujeito que pratica o comportamento desviante fundam-se, exatamente, nesse argumento e na construção do “medo” para segregar e excluir cada vez mais a vida em sociedade nas cidades contemporâneas e o papel político e ideológico nas políticas criminais.

A resposta policial nos conflitos urbanos é seletiva e incide diferentemente em função dos atores mobilizados e do território que ocupam. A cultura do medo também varia o seu “objeto” dependendo se é morador das regiões periféricas que teme os abusos por parte da própria polícia ou da classe média que teme o estigma do habitante da periferia. E o questionamento no final da música feito pela Linn retrata isso “No morro, na marra quem morre sou eu? Ou sou eu quem mata? ”.

REFERÊNCIAS:

GIAMBERARDINO, R. A. Um modelo restaurativo de censura como limite ao discurso punitivo. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014.

SILVA, Luiz Antonio Machado da; LEITE, Marcia Pereira; FRIDMAN, Luis Carlos. Matar, morrer, “civilizar”: o “problema da segurança pública” (Relatório).MAPAS:IBASE/Action Aind Brasil, 2005.

[1] QUEBRADA, Linn. Bomba pra caralho. In: Pajubá. São Paulo: Independente, 2017. 1 CD (45min 6s). Faixa 3 (2m 22s). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZYOIvMyZ_GU.

[2] A música está no álbum Pajubá, uma expressão de resistência histórica de origem africanas ocidentais, inseridas depois no vocabulário de gírias da comunidade LGBTQI. Nesse primeiro álbum de carreira, a artista, além trazer o cenário das periferias para as suas composições, levanta também importantes debates sobre: identidade de gênero, sexualidade, preconceitos religiosos e resistências políticas.

[3] Violência estrutural como ‘repressão das necessidades reais dos indivíduos’, dentro da qual se coloca ainda a violência institucional como aquela exercida diretamente pelo Estado

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