A (in)dignidade da vida animal

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Por Rafaela Bortolini |O atual período de seca e queimadas em Mato Grosso tem rendido tristes fotografias de animais agonizando no Pantanal. Onças sufocadas pela fumaça e com as patas queimadas. Aves carbonizadas ao lado dos seus ninhos com ovos. Jacarés queimados com a boca aberta. Cobras incineradas. Entre outros animais, desidratados e asfixiados.

Os vídeos não são menos impressionantes: bois encurralados, estourando as cercas, para fugir das labaredas imensas que tomam conta do pasto.

Vivemos os meses mais secos do ano: já são mais de 100 dias sem chuva e batemos o triste recorde das maiores temperaturas no período.

As cenas urbanas não são melhores que as rurais: o horizonte está tomado pela fumaça. Já não se enxerga mais o relevo da Chapada, com o imponente Morro de São Jerônimo, tampouco o Morro de Santo Antônio de Leverger. Tudo que está a poucos quilômetros de distância fica completamente encoberto pela fumaça e some da paisagem. 

Com tanta seca e fumaça, parece que o calor nos centros urbanos tem aumentado muito. Os gatos e cachorros de rua, mais do que nunca, dependem da compaixão de pessoas que lhes ofereçam um resgate ou cuidados mínimos de água e comida nas calçadas. 

Presenciei a agonia de um gato de rua, em um dos viadutos mais movimentados da capital, sob o sol escaldante do meio-dia. Ele não morreu atropelado – o que seria previsível e não menos cruel. Morreu de sede, exaustão, calor, cambaleando frágil no concreto quente, faminto, pequeno e sozinho, nessa selva de pedra infernal. 

Pergunto-me se será tudo em vão e se não há nada a aprender.

Muito se estudou, em diversos ambientes acadêmicos, sobre a dignidade da vida humana, com marcante influência do pensamento kantiano.

Sem dúvida, trata-se de importante passo para a humanidade reconhecer que a vida humana não pode ser “objetificada”, isto é, não pode ser objeto para algum fim. Ela é o próprio fim – e não o meio para algo. É sob essa perspectiva que devemos, inclusive, compreender a relação do Estado com o indivíduo – lembrando que o fim do Estado é o ser humano, e não o contrário. 

Quando nos referimos à dignidade da vida, porém, podemos ir além da vida humana, para abranger outras formas de vida, agregando, assim, sensibilidade ecológica à clássica contribuição de Kant para o desenvolvimento do pensamento.

Podemos reconhecer que a vida, em qualquer de suas formas, não só a humana, possui um valor intrínseco, uma preciosidade que lhe é inerente, apenas por ser o que é: vida.

Há alguma coisa de transcendente e espiritual na própria base da vida – e não apenas na etapa evolutiva em que estamos nós, os humanos. Há valor em toda e qualquer forma de vida, inclusive a de animais não-humanos. Esse é o ponto em que estamos falhando como humanidade. Afinal, toda forma de vida merece tratamento digno e não cruel.

Isso, necessariamente, provoca reflexões sobre a crueldade a que estão expostos os animais em geral, tanto os de rua, como, especialmente agora, os silvestres que são vítimas de incêndios florestais.

Temos assistido – esse verbo é oportuno por uma razão evidente – a incontáveis mortes de animais nas queimadas no Pantanal.

Assistimos e, novamente, assistimos. As cenas passam na televisão, nas redes sociais, nos grupos de aplicativos de conversa etc. Nós assistimos o tempo todo, em nossas telas de celular, à banalização da morte cruel.

Encurralados por labaredas ardentes, ou pisando em solo extremamente aquecido, sem chance de escapar, alguns morrem sufocados pela fumaça, outros em decorrência de ferimentos ou, ainda pior, queimados vivos.

Poucos conseguem ser resgatados, apesar do hercúleo esforço de profissionais e voluntários dedicados a essa missão. A capacidade de salvar é tímida, em comparação com a letalidade do fogo infreável. 

Será que precisa ser assim? Afinal, somos a força transformadora do mundo em que vivemos. 

A resposta passa pelo necessário reconhecimento de que é preciso respeitar a dignidade da vida em qualquer de suas formas, não só a humana, e que a crueldade não pode ser tolerada. Essa é uma premissa fundamental.

Perceber o valor intrínseco presente em todas as formas de vida nos permitirá adotar posturas mais éticas e comprometidas com o futuro, seja em âmbito individual, em nossas vidas particulares, seja coletivo, perante a sociedade, nas esferas públicas e privadas em que estamos inseridos.

O conjunto de soluções que oferecermos a esse problema, que é urgente e de proporções desafiadoras, dirá ao mundo que tipo de seres somos nós: habilidosos ou inconsequentes, conscientes ou alienados, quanto à responsabilidade de preservar a nossa casa comum – e se ainda teremos alguma casa para o futuro.

* Rafaela Emília Bortolini é procuradora do Estado de Mato Grosso e professora de direito ambiental. 

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